Obstáculos aos serviços de promoção de saúde emocional, comportamental e social da criança


Chedoke Child and Family Centre, Canadá
(Inglês). Tradução: junho 2011

Versão em PDF

Introdução

Neste artigo sobre obstáculos aos serviços, começamos pela definição dos parâmetros de nosso trabalho. Obstáculos são definidos como barreiras verdadeiras e perceptíveis que impedem o acesso aos serviços ou interferem nele. Serviços são definidos como intervenções específicas ou estratégias de prevenção que visam reduzir problemas emocionais, comportamentais e sociais na infância. Definimos problemas emocionais, comportamentais e sociais de maneira ampla, uma vez que, na área de saúde mental infantil, os pontos de vista a respeito de causas e de definições de problemas são muito variáveis.1

Focalizamos crianças desde o nascimento até os 5 anos que vivem em famílias de baixa renda. No entanto, a escassez de literatura sobre esse tipo de população levou-nos a examinar mais amplamente os serviços orientados para a redução de problemas emocionais, comportamentais e sociais da criança. Consequentemente, as conclusões a que chegamos e as implicações discutidas aqui aplicam-se para além dessa população especifíca.

Contexto

Mais de 1,2 milhão de crianças canadenses vivem em condições de pobreza.2 Sucessivos estudos transversais que fornecem um retrato sobre o desempenho dessas crianças em determinado momento demonstraram uma associação entre baixa renda e diversas morbidades infantis,3-6 entre as quais dificuldades emocionais, comportamentais e sociais. Estudos longitudinais, que permitem a investigação do impacto de baixa renda sobre o desenvolvimento infantil no decorrer do tempo, aprofundam a evidência de que quanto mais severa e mais longa a duração da pobreza nos primeiros anos de vida – anos pré-escolares e escolares iniciais –, maior será o impacto sobre os resultados na criança.6-7 Este artigo focaliza crianças pobres de até 5 anos de idade – uma população em situação de alto risco quanto ao desenvolvimento de dificuldades emocionais, comportamentais e sociais. 

Questões-chave

A estrutura para a identificação de obstáculos aos serviços que visam à redução de problemas emocionais, comportamentais e sociais na infância em famílias de baixa renda que têm filhos pequenos avalia quatro questões específicas:

  1. Os serviços são eficazes? 
  2. Os serviços estão disponíveis?
  3. Aqueles que necessitam dos serviços estão sendo encaminhados para eles?
  4. Os serviços são acessíveis?

Pesquisas

Os serviços são eficazes? 

Muitos serviços que atendem famílias de baixa renda com filhos pequenos têm sido avaliados de maneira rigorosa e parecem ser eficazes. Esses serviços individuais específicos consistem em alguns programas de creche e pré-escola,8 programas de práticas parentais,9 e serviços de visita domiciliar por enfermeiras.10 Uma revisão completa desses serviços extrapola o escopo deste artigo. Outros serviços para famílias de baixa renda com filhos pequenos estão sendo cuidadosamente avaliados no momento – por exemplo, grupos de apoio/educação para mães solteiras de baixa renda e com filhos pequenos.11 Os resultados preliminares são positivos, mas a avaliação desses serviços ainda está incompleta. 

É alarmante o fato de ser muito reduzido o número de programas para famílias de baixa renda com filhos pequenos que foram avaliados rigorosamente. O mesmo aplica-se, de forma mais ampla, a toda a gama de serviços que visam à redução de problemas emocionais e comportamentais na infância.

Além da necessidade de mais avaliações, é importante também considerar qual é o método de avaliação adotado. As estratégias de pesquisa para avaliar serviços variam desde pesquisas sobre eficácia (estudo sobre o funcionamento do serviço em condições ideais) até pesquisas sobre efetividade (estudo de como o serviço funciona no mundo real). A avaliação de serviços no mundo real é importante, uma vez que, por um lado, os participantes de estudos de eficácia podem não ser representativos da população que frequenta clínicas convencionais ou serviços baseados na comunidade; e, por outro, porque os serviços oferecidos em estudos sobre eficácia podem ser altamente controlados e não representar com precisão os serviços oferecidos no mundo real.12,13,14 Portanto, uma estrutura de avaliação eficaz é altamente relevante para a avaliação dos serviços. 

Os serviços estão disponíveis?

A disponibilidade de serviços que visam à redução de problemas emocionais e comportamentais na infância varia de acordo com o local de moradia da família. Assim, no Canadá, os serviços não estão prontamente disponíveis nem para todas as famílias de baixa renda com filhos pequenos, nem para outras populações de famílias e crianças. De modo geral, neste país, os serviços estão mais prontamente disponíveis em contextos urbanos (em contraste com rurais) e nas regiões do sul do país (em contraste com as do norte). Na verdade, as pesquisas sugerem que apenas uma proporção relativamente pequena de crianças com problemas emocionais e comportamentais chega de fato a receber ajuda profissional.15-16 Embora nem todas as crianças com problemas emocionais e comportamentais necessitem de recursos profissionais, o aumento da disponibilidade, por meio da criação de novos serviços, da contratação de mais funcionários e da redistribuição de recursos,17 seria um passo importante para a superação dos obstáculos aos serviços para muitas famílias, entre as quais as famílias de baixa renda com filhos pequenos.

Aqueles que necessitam dos serviços estão sendo encaminhados para eles?

Se a questão de “qual serviço deveria ser procurado” é mal compreendida (reconhecimento do problema) ou se a compreensão sobre o serviço disponível é pouco clara ou desfavorável (percepção do serviço), é possível que as famílias não procurem esse atendimento. As dificuldades de reconhecimento do problema incluem a incapacidade de pais, professores ou provedores de cuidados de saúde para identificar a necessidade do serviço,1 a negação da gravidade do problema,1 e a crença de que é possível “resolver” o problema sem intervenção,1,18 ou que com o tempo o problema se resolverá por si só.18 Além disso, a família precisa ter alcançado algum nível de disposição para mudança19 antes de procurar os serviços.11 As dificuldades de percepção do serviço incluem falta de confiança nos provedores ou experiências anteriores negativas com relação ao serviço, falta de motivação da criança para receber ajuda, e estigmas relacionados a problemas de saúde mental.11 A educação sobre normas e desvios do desenvolvimento emocional, comportamental e social de crianças desde o nascimento até os 5 anos de idade e sobre abordagens que podem contribuir para lidar com os problemas específicos da criança e da família pode ajudar as famílias e outros envolvidos a tomarem decisões bem-fundamentadas sobre a necessidade ou não do serviço. Outras ações também podem ser úteis, tais como conscientização da comunidade quanto a problemas de saúde mental na infância, comentários de apoio por parte de pessoas que já utilizaram os serviços ou de líderes comunitários, e esforços para a redução de estigmas.20

Os serviços são acessíveis?

A existência de um serviço eficaz, disponível e reconhecido como necessário para as famílias e seus filhos pequenos ainda é pouco útil se as famílias não tiverem acesso a ele. Os obstáculos à acessibilidade incluem listas de espera, custos do serviço, transporte, horário e localização inconvenientes, provimento de cuidados infantis, disposição dos pais, questões culturais e idiomáticas e letramento dos pais.1,11,21 Famílias de baixa renda podem preferir intervenções que não sejam realizadas em clínicas,21,22 embora nem todos os estudos confirmem consistentemente este ponto de vista.23 Estudos sobre o abandono das intervenções mostraram que famílias socioeconomicamente desfavorecidas, nas quais 

os pais têm pouca instrução, apresentam psicopatologias e vivenciam altos níveis de estresse, têm maior propensão a abandonar os serviços e programas.24,25 Essas características são compartilhadas por muitas famílias de baixa renda.

Os obstáculos identificados ofereceram parâmetros lógicos para os métodos utilizados para aumentar a acessibilidade aos serviços. Entre esses métodos, incluem-se provimento de cuidados infantis, auxílio para custos de transporte, diversificação de horários e locais de atendimento, programas gratuitos ou de baixo custo e esforços para ajustamento a diferenças culturais, idiomáticas e de letramento. Uma outra abordagem para aumentar a acessibilidade aos serviços é perguntar às famílias sobre suas preferências. Técnicas de pesquisa de mercado foram aplicadas a diversos tipos de famílias, entre os quais famílias de baixa renda, para identificar preferências por programas.26,27,28 Questões como o momento de participação, qualificações do instrutor e fundamentação do programa em pesquisas foram identificadas como aspectos importantes. 

Conclusões

Nossa estrutura para a compreensão dos obstáculos aos serviços que visam ajudar crianças com dificuldades emocionais e comportamentais baseia-se em quatro perguntas específicas: (1) Os serviços são eficazes? (2) Os serviços estão disponíveis? (3) Aqueles que necessitam dos serviços estão sendo encaminhados para eles? (4) Os serviços são acessíveis? Foram identificados obstáculos para os serviços em todas essas áreas. Em primeiro lugar, em termos de eficácia, alguns serviços para essa população de famílias foram avaliados e considerados úteis. No entanto, muitos serviços não foram avaliados de maneira adequada. Em segundo lugar, a disponibilidade dos serviços varia de acordo com a localidade onde moram os participantes: zona rural ou urbana, região norte ou sul. Em terceiro lugar, podem existir dificuldades tanto com o reconhecimento do problema quanto com a percepção do serviço, o que cria obstáculos à sua utilização por famílias de baixa renda com filhos pequenos. Finalmente, foram identificadas numerosas dificuldades de acesso aos serviços. 

Implicações

A remoção dos obstáculos aos serviços para famílias de baixa renda com filhos pequenos (e para muitas outras famílias canadenses) é uma tarefa que varia de acordo com a dificuldade a ser superada. Portanto, as recomendações devem refletir essa especificidade. Intervenções que se mostraram eficazes devem estar amplamente disponíveis, ao passo que aquelas que não o mostraram devem ser submetidas à avaliação. Deve-se atentar cuidadosamente para a sobrecarga sobre o entrevistado quando se pede às famílias que participem de avaliações.15 Além disso, deve-se notar que as dificuldades de acesso ao serviço estão relacionadas a questões amplas, tais como o planejamento de cuidados de saúde nos níveis nacional e provincial, especificamente em termos de recrutamento e financiamento de profissionais da saúde que trabalham com crianças pequenas e famílias. É necessário planejamento para assegurar que os recursos adequados para atender populações de crianças e famílias em situação de risco estejam disponíveis. As dificuldades relativas ao reconhecimento do problema e à percepção do serviço podem ser superadas por meio de educação apropriada sobre comportamento infantil normal e alterado, e aceitação dos serviços pela comunidade. As dificuldades de acesso aos serviços foram bem documentadas, e também pode ser muito útil para a superação desses obstáculos o planejamento cuidadoso do momento de participação e da localização, do provimento de cuidados infantis e do auxílio para custos de transporte. Portanto, todos esses itens devem ser considerados como parte da rotina do trabalho de planejamento e dos orçamentos de serviços.

Referências

  1. Owens PL, Hoagwood K, Horwitz SM, Leaf PJ, Poduska JM, Kellam SG, Ialongo NS. Barriers to children’s mental health services. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry 2002;41(6):731-738.
  2. Statistics Canada. Persons in low-income before tax: 1996-2000. Disponível em: http://www.statcan.ca/english/Pgdb/famil41a.htm. Acesso em:06 de Agosto de 2003.
  3. Lipman EL, Offord DR, Boyle MH. Relation between economic disadvantage and psychosocial morbidity in children. Canadian Medical Association Journal 1994;151(4):431-437.
  4. Lipman EL, Offord DR. Psychosocial morbidity among poor children in Ontario. In: Duncan GJ, Brooks-Gunn J, eds. Consequences of growing up poor. New York, NY: Russell Sage Foundation; 1997:239-287.
  5. Lipman EL, Offord DR, Dooley MD. What do we know about children from single-mother families? Questions and answers from the National Longitudinal Survey of Children and Youth. In: Human Resources Development Canada, Statistics Canada, eds. Growing Up in Canada: National Longitudinal Survey of Children and Youth. Ottawa, Canada: Human Resources Development Canada, Statistics Canada; 1996:119-126. Catalogue No. 89-550-MPE, no. 1.
  6. Brooks-Gunn J, Duncan GJ. The effects of poverty on children. Future of Children 1997;7(2):55-71.
  7. Duncan GJ, Brooks-Gunn J. Income effects across the life span: integration and interpretation. In: Duncan GJ, Brooks-Gunn J, eds. Consequences of growing up poor. New York, NY: Russell Sage Foundation; 1997:596-610.
  8. Zoritch B, Roberts I, Oakley A. Day care for pre-school children. Cochrane Database of Systematic Reviews 2002;4.
  9. Barlow J, Parsons J. Group-based parent-training programmes for improving emotional an behavioural adjustment in 0-3 year old children. Cochrane Database of Systematic Reviews 2002;4.
  10. Olds DL, Henderson CR Jr., Chamberlain R, Tatelbaum R. Preventing child abuse and neglect: a randomized trial of nurse home visitation. Pediatrics 1986;78(1):65-78.
  11. Lipman EL, Secord M, Boyle MH. Moving from the clinic to the community: The Alone Mothers Together Program. Canadian Journal of Psychiatry-Revue canadienne de psychiatrie 2001;46(7):657.
  12. Streiner DL. The 2 “Es” of research: efficacy and effectiveness trials. Canadian Journal of Psychiatry-Revue canadienne de psychiatrie 2002;47(6):552-556.
  13. Weisz JR, Donenberg GR, Han SS, Kauneckis D. Child and adolescent psychotherapy outcomes in experiments versus clinics: why the disparity? Journal of Abnormal Child Psychology 1995;23(1):83-106.
  14. Jensen PS, Hoagwood K, Petti T. Outcomes of mental health care for children and adolescents: II: Literature review and application of a comprehensive model. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry 1996;35(8):1064-1077.
  15. Boyle MH, Offord DR. Prevalence of childhood disorder, perceived need for help, family dysfunction and resource allocation for child welfare and children’s mental health services in Ontario. Canadian Journal of Behavioural Science 1988;20(4):374-388.
  16. Boyle MH. Children’s mental health issues: prevention and treatment. In: Johnson LC, Barnhorst D, eds. Children, families and public policy in the 90s. Toronto, Ontario: Thompson Educational Publishing; 1991:73-104.
  17. Canadian Academy of Child Psychiatry. Physician Resource Committee. Child Psychiatry in Canada. Position Statement; January 2002.
  18. Pavuluri MN, Luk SL, McGee R. Help-seeking for behavior problems by parents of preschool children: A community study. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry 1996;35(2):215-222.
  19. Prochaska JO, Velicer WF, Rossi JS, Goldstein MG, Marcus BH, Rakowski W, Fiore C, Harlow LL, Redding CA, Rosenbloom D, Rossi SR. Stages of change and decisional balance for 12 problem behaviors. Health Psychology 1994;13(1):39-46.
  20. Lovato LC, Hill K, Hertert S, Hunninghake DB, Probstfield JL. Recruitment for controlled clinical trials: Literature summary and annotated bibliography. Controlled Clinical Trials 1997;18(4):328-352.
  21. Cunningham CE, Bremner R, Boyle M. Large group community-based parenting programmes for families of preschoolers at risk for disruptive behavior disorders: utilization, cost effectiveness and outcome. Journal of Child Psychology and Psychiatry and Allied Disciplines 1995;36(7):1141-1159.
  22. Hazell PL, Tarren-Sweeny M, Vimpani GV, Keatinge D, Callan K. Children with disruptive behaviours II: Clinical and community service needs. Journal of Paediatrics and Child Health 2002;38(1):32-40.
  23. Harrington R, Peters S, Green J, Byford S, Woods J, McGowan R. Randomised comparison of the effectiveness and costs of community and hospital based mental health services for children with behavioural disorders. British Medical Journal 2000;321(7268):1047-1050A.
  24. Spoth R, Goldberg C, Redmond C. Engaging families in longitudinal preventive intervention research: Discrete-time survival analysis of socioeconomic and social-emotional risk factors. Journal of Consulting and Clinical Psychology 1999;67(1):157-163.
  25. Kazdin AE, Mazurick JL. Dropping out of child psychotherapy: Distinguishing early and late dropouts over the course of treatment. Journal of Consulting and Clinical Psychology 1994;62(5):1069-1074.
  26. Spoth R, Redmond C. Identifying program preferences through conjoint analysis: Illustrative results from a parent sample. American Journal of Health Promotion 1993;8(2):124-133.
  27. Buchanan D, Cunningham C, Miller H. Factors affecting parent participation in courses and groups. Communication présentée au: Children’s Mental Health Ontario Annual Meeting; May, 2002; Ottawa, Ontario.
  28. Rohrer JE, Vaughn T, Westermann J. Mission-driven marketing: a rural example. Journal of Healthcare Management 1999;44(2):103-116.

Para citar este artigo:

Lipman EL, Boyle MH. Obstáculos aos serviços de promoção de saúde emocional, comportamental e social da criança. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/baixa-renda-e-gravidez/segundo-especialistas/obstaculos-aos-servicos-de-promocao-de-saude-emocional. Publicado: Março 2003 (Inglês). Consultado em 20 de abril de 2024.

Texto copiado para a área de transferência ✓