A brincadeira e o desenvolvimento da alfabetização precoce. Comentários sobre o artigo de Christie e Roskos


Pennsylvania State University, EUA
(Inglês). Tradução: fevereiro 2013

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Introdução

Enquanto meio ou contexto para o desenvolvimento da alfabetização precoce, o brincar foi objeto de pesquisas intensivas nas duas últimas décadas. Christie e Roskos1 examinaram esses trabalhos e relatam a existência de uma conexão entre a brincadeira de faz-de-conta e o aprendizado da alfabetização precoce, e afirmam também que fatores ambientais físicos e sociais podem influenciar favoravelmente tanto a qualidade do brincar quanto o desenvolvimento da alfabetização precoce durante a primeira infância. Esses coautores observam que várias lacunas de conhecimentos ainda permanecem e que essa área é muito fértil em hipóteses que exigem mais pesquisas e a elaboração de outras teorias. Além disso, sua discussão no tocante às implicações sugere que essa área de pesquisa desfruta de uma comunicação dinâmica com a prática e as políticas relativas ao desenvolvimento e à educação precoces.

Pesquisa e conclusões

Os autores sugerem que as raízes conceituais do estudo das relações entre a brincadeira e a alfabetização precoce e do papel do ambiente podem ser encontradas nas teorias de Jean Piaget e de Lev Vygotsky, bem como em seus textos sobre a simbolização e o processo de scaffolding (construção progressiva). Embora nenhum desses teóricos tenha tentado explicar a forma exata de a brincadeira exercer uma influência sobre o desenvolvimento da linguagem e da alfabetização na primeira infância, os constructos encontrados nos seus trabalhos, incluindo as representações mentais, o pensamento transformacional, a abstração reflexiva e as interações sociais, fornecem pistas que ajudam a reunir as conexões entre o brincar e a alfabetização precoce. A ideia de “faz-de-conta” e os processos de narração caracterizam ambos, o que sugere a existência de uma ligação cognitiva importante entre o brincar e a alfabetização precoce. As pesquisas citadas sobre variáveis de contexto, como a presença de uma pegada ambiental, os acessórios que valorizam a alfabetização precoce e a mediação dos adultos assim como sua influência sobre a qualidade da brincadeira, podem ser encontradas nas teorias clássicas relativas ao desenvolvimento das crianças (por exemplo, as teorias de Piaget, de Vygotsky e de Bronfenbrenner).

Christie e Roskos  cobrem muitos assuntos e citam a influência dos pares e a utilização pelas crianças das estratégias de compreensão (por exemplo, a autoverificação) nos comportamentos relativos à brincadeira e à alfabetização precoce. Eles se concentram de maneira convincente e sucinta sobre o processo e o ambiente da brincadeira, respondendo a duas perguntas da pesquisa: (1) a relação da brincadeira com o desenvolvimento da alfabetização precoce e (2) as relações entre o ambiente físico e social e os comportamentos relativos à brincadeira e à alfabetização precoce. Eles não tentaram fazer uma revisão geral das pesquisas sobre a brincadeira e o desenvolvimento da alfabetização precoce. Por exemplo, eles trataram da brincadeira de faz-de-conta e não levaram em conta outras formas de brincadeiras ligadas às habilidades de linguagem e de alfabetização precoce, tais como a brincadeira do amiguinho imaginário ou com blocos.2,3 Ampliar o espectro da pesquisa para incluir jogos de tabuleiro, jogos de construção ou jogos construtivos, a escuta receptiva (por exemplo, com livros para crianças), etc., poderia ter sido impraticável considerando o número limitado de palavras conhecidas pelas crianças pequenas. Além disso, existe pouca pesquisa básica sobre essas outras formas de brincadeiras que poderia ajudar a responder essas duas perguntas da pesquisa. Contudo, o certo é que o contexto e o conteúdo desses outros tipos de brincadeiras criam oportunidades de comportamentos de linguagem e de alfabetização precoce que enriquecem ou consolidam as habilidades e a motivação ou o interesse em expressá-las.

Da mesma forma, outros teóricos além de Piaget e Vygotsky influenciaram a pesquisa sobre esse tema. Por exemplo, a dimensão dialógica da linguagem de Bakhtin e o conceito de heteroglossia – as múltiplas maneiras de falar em uma situação social – inspiraram outros pesquisadores. A perspectiva de Bakhtin sobre a autoidentidade e a linguagem e o contexto sociocultural em geral, é encontrada em um grande número de estudos interpretativos ou qualitativos relativos à base de conhecimentos sobre a brincadeira e a alfabetização precoce.4,5 Por exemplo, as pesquisas de Keith Sawyer a respeito da brincadeira de faz-de-conta com pares e da improvisação dão uma ideia do valor da brincadeira para desenvolver habilidades de conversação e competências em comunicação.6 O fato de incluir esses estudos na base de dados implica uma visão mais ampla da alfabetização precoce.

Como sugerem Christie e Roskos,1 esse campo precisa de uma extensão e um aprofundamento das teorias e das pesquisas relativas à brincadeira e à alfabetização precoce. Além de experiências controladas, estudos longitudinais e da utilização de procedimentos estatísticos modernos, os pesquisadores precisam de investigações metódicas do ponto de vista sociocultural, bem como de estudos e etnografias de casos para entender de forma mais completa todos os aspectos da brincadeira e da alfabetização precoce em casas, escolas e comunidades. As inovações tecnológicas exigem cada vez mais uma alfabetização precoce multimídia; a pesquisa sobre esse assunto deve ser feita assim como em relação às identidades multiculturais e às crianças que aprendem simultaneamente duas línguas. Aquilo que deve ser estudado tornou-se cada vez mais complexo e importante para a educação e para entender o desenvolvimento.

Implicações para o desenvolvimento e as políticas

Os coautores concluem que a brincadeira pode melhorar a alfabetização precoce e recomendam sua integração em programas equilibrados e colocados em redes. A brincadeira não deve ser uma atividade “independente”. Eles aconselham um ensino direto para as habilidades precoces essenciais na alfabetização precoce, com o objetivo de completar as estratégias ligadas à brincadeira, ao menos para as crianças que correm o risco de insucesso no aprendizado da leitura e na escola. A escolha de Christie e Roskos1 de integrar a brincadeira e a alfabetização precoce na educação precoce é compartilhada por outros pesquisadores que trabalham sobre uma pedagogia da brincadeira.7,8,9 Eles elaboram técnicas como a brincadeira temática de fantasia, a brincadeira sociodramática, os mundos das brincadeiras, a narração e a representação de histórias, a improvisação, a expressão dramática, a expressão artística e as brincadeiras musicais. Os objetivos da alfabetização precoce com a pedagogia da brincadeira estão incorporados em um conjunto mais abrangente de objetivos para a educação na primeira infância. Os estudos sobre a pedagogia da brincadeira procuram contribuir à educação precoce no intuito de parar com o vaivém entre a brincadeira livre e o ensino direto e outros métodos formais. Os pesquisadores que trabalham sobre a pedagogia da brincadeira evitam ter uma perspectiva reducionista do aprendizado da alfabetização precoce (por exemplo, a decodificação) bem como um foco exclusivo sobre o desenvolvimento da alfabetização precoce, escolhendo uma abordagem da criança na sua totalidade, focada tanto na criatividade, na imaginação, na autodescoberta e na perseverança da criança quanto em suas atitudes positivas e seu interesse para a leitura.

O abandono da brincadeira na educação precoce suscita cada vez mais preocupação. O relatório da Alliance for Childhood intitulado Crisis in Kindergarten atesta a extensão do problema.10 Organizações como a Society for Research in Child Development e a National Association for the Education of Young Children trabalham juntas para apresentar as evidências de pesquisa que mostram o quanto a brincadeira tem uma importância capital durante os anos pré-escolares.11 A pesquisa sobre a alfabetização precoce e a brincadeira fornece as grandes linhas da brincadeira educativa. Entretanto, a brincadeira educativa difere da brincadeira do dia-dia, a primeira sendo chamada por David Elkind de brincadeira funcional ou centrada no adulto, enquanto que a brincadeira quotidiana ou brincadeira “autêntica” é chamada de brincadeira experiencial ou centrada na criança.12 Com certeza, ambos os tipos de brincadeiras são úteis ao desenvolvimento da alfabetização precoce.

E eles não são necessariamente opostos. Em geral, considera-se que a brincadeira é motivada de maneira individual e intrínseca. Mas nem sempre é o caso. A brincadeira educativa é relacionalmente motivada e envolve o educador e os colegas da turma. Os professores e os pais podem facilmente entrar nos mundos da brincadeira das crianças pequenas, e com bom aproveitamento se agirem da maneira certa. Eles podem orientar a brincadeira para que sirva ao aprendizado da alfabetização precoce (e orientar o aprendizado da alfabetização precoce para promover brincadeiras de melhor qualidade). Ainda assim, o objetivo principal da brincadeira não é outra coisa senão brincar mais e brincar melhor.

Referências

  1. Christie JF, Roskos KA. Play’s potential in early literacy development. In: Tremblay RE, Barr RG, Peters RDeV, Boivin M, eds. Encyclopedia on early childhood development [online]. Montreal, Quebec: Centre of Excellence for Early Childhood Development; 2009:1-6. Available at: http://www.child- encyclopedia.com/documents/Christie-RoskosANGxp.pdf. Accessed June 4, 2010.
  2. Trionfis G, Reese E. A Good Story: Children with imaginary companions create richer narratives. Child Development 2009;80(4):1301-1313.
  3. Stroud J. Block play: Building a foundation for literacy. Early Childhood Education Journal 1995;23(1):9-13.
  4. Cohen L. The heteroglossic world of preschoolers’ pretend play. Contemporary Issues in Early Childhood 2009;10(4):331-342.
  5. Bakhtin M. The dialogic imagination. Austin, TX: University of Texas Press, 1981.
  6. Sawyer K. Pretend play as improvisation: Conversation in the preschool classroom. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates; 1997.
  7. Bodrova E. Make-believe play versus academic skills: A Vygotskian approach to today’s dilemma of early childhood education. European Early Childhood Education Research Journal 2008;16(3):357-369.
  8. Johnson JE. Play pedagogy and early development and education. International Journal of Early Childhood Education 2007;13(2):7-26.
  9. Pramling I, Johansson E. Play and learning-inseparable dimensions in preschool practice. Early Child Development and Care 2006;176(1):47-65.
  10. Miller E, Almon J. Crisis in the kindergarten: Why children need to play in school. College Park, MD: Alliance for Childhood; 2009.
  11. Hirsh-Pasek K, Michnick Golinkoff R, Berk L, Singer D. A mandate for playful learning in preschool. New York, NY: Oxford University Press; 2009.
  12. Elkind D. Thanks for the memory: The lasting value of true play. Young Children 2003;58(3):46-51.

Para citar este artigo:

Johnson JE. A brincadeira e o desenvolvimento da alfabetização precoce. Comentários sobre o artigo de Christie e Roskos . Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Smith PK, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/brincar/segundo-especialistas/brincadeira-e-o-desenvolvimento-da-alfabetizacao-precoce-comentarios. Publicado: Julho 2010 (Inglês). Consultado em 28 de março de 2024.

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