Políticas de cuidados não parentais: uma perspectiva comparativa


Chancellor’s Professor and Director, Institute of Political Economy, Carleton University, Canada
(Inglês). Tradução: junho 2011

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Introdução

O reconhecimento crescente da importância do cuidado não parental foi acompanhado pela aceitação também crescente da necessidade de alguma forma de apoio governamental. No entanto, tal como variam os motivos subjacentes ao aumento da demanda por cuidados não parentais, varia também o envolvimento dos governos. A análise comparativa desses padrões de escolha pode contribuir para a identificação das melhores práticas. 

Do que se trata

Décadas de pesquisas comparativas resultaram em um consenso geral sobre os requisitos básicos de um bom sistema de cuidados não parentais e no reconhecimento de que a criação desse sistema requer apoio governamental. A análise comparativa de políticas mostra que poucos países, por exemplo, Dinamarca e Suécia, aproximam-se do ideal. Em outros países, há “ilhas de excelência” – por exemplo, Emilia Romagna, na Itália. No entanto, muitos sistemas oferecem muito menos, e desenvolvimentos recentes sugerem que a tendência não é necessariamente de progressos em direção ao ideal.

Questões 

Há um consenso bastante generalizado na comunidade de pesquisa quanto às seguintes questões centrais:

  1. o sistema deve ser acessível. Nenhuma criança deveria ser excluída por questões de renda, status de emprego dos pais, local de residência ou cidadania formal. No entanto, em muitos sistemas o acesso é problemático, uma vez que há problemas de espaço insuficiente ou, para muitas famílias, os custos constituem uma barreira para cuidados de qualidade;

  2. o programa deve ter alta qualidade. Inúmeros estudos documentaram a importância de cuidados não parentais de boa qualidade, que se traduzem em: um ambiente físico saudável, seguro e estimulante; em proporções adequadas de crianças/profissionais; e em um programa pedagógico que reconheça a criança como agente no aqui e agora. O atendimento a essas condições requer investimento público, não apenas para tornar o sistema financeiramente acessível, mas também para oferecer uma equipe capacitada e adequadamente remunerada;

  3. o programa deve ser abrangente. Além de promover acesso universal, o sistema deve reconhecer a diversidade de necessidades e respeitar as diferenças culturais e linguísticas da população, o que também exige envolvimento do governo. O cumprimento desses objetivos, por sua vez, depende do estabelecimento de uma estrutura efetiva de governança, de forma a enfrentar os desafios de integração, coordenação e diversidade local.

Contexto de pesquisa

As primeiras pesquisas sobre políticas de cuidado não parental foram realizadas com o patrocínio da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE) na década de 1979. Outras pesquisas sobre políticas aplicadas foram conduzidas na década de 1990 pela importante, porém efêmera, Rede da Comissão Europeia sobre Cuidados na Infância, além de iniciativas mais recentes da OCDE. Na década de 1990, o interesse acadêmico no assunto difundiu-se para além dos especialistas em desenvolvimento na primeira infância, à medida que pesquisadores feministas do estado de bem-estar social chamaram a atenção para os desafios criados pela crescente “crise de cuidados”. Uma linha independente de investigação salientou o desenvolvimento de “cadeias globais de cuidados,”1 isto é, o recrutamento de mulheres vindas de países do Sul (ou do Leste Europeu) para prover cuidados nos lares de famílias da Europa Ocidental e da América do Norte. 

Questões de pesquisa

De que diferentes formas os governos modelam o âmbito e a qualidade dos arranjos de cuidado não parental? De que maneiras os vários países responderam aos desafios de governança? Por fim, em que medida os governos recorreram ao recrutamento por meio de canais globais para atender à demanda crescente por cuidados não parentais?

Resultados de pesquisa

As primeiras pesquisas realizadas com o patrocínio da OCDE salientaram a necessidade de integrar o cuidado em creches – um serviço oferecido originalmente para crianças cujas mães precisavam trabalhar para manter a renda da família – e dos jardins de infância – educação pré-escolar normalmente para crianças de 3 a 6 anos de idade, em geral em tempo parcial e, em muitos países, amplamente disponível para famílias de alta renda.2,3,4 Ao evidenciar a necessidade de combinar esses dois modelos, esses estudos salientaram a urgência de atender à demanda criada pela crescente participação feminina na força de trabalho por meio do provimento de serviços de boa qualidade, oferecidos em quantidade suficiente e adequados para o atendimento das necessidades das crianças. 

No entanto, nem todos os sistemas foram planejados para cumprir essas exigências. Os estudos identificaram três padrões de provimento: (a) a abordagem laissez-faire, caracterizada pela coexistência de diversos sistemas, parcialmente associados à idade, com serviços prestados por iniciativa privada ou por voluntários; (b) o sistema dual, baseado em divisores de idade (creches para bebês e crianças pequenas, pré-escolas para os maiores de 3 anos e até a idade escolar), praticado tipicamente na França e na Itália; e (c) o sistema coordenado, do qual foram pioneiros os países nórdicos. 

As várias formas pelas quais os diversos países combinaram (ou deixaram de combinar) educação e cuidados continuaram a ser alvo de pesquisas na literatura sobre desenvolvimento na primeira infância.5 Até a década de 1990, aqueles que se interessavam por padrões mais amplos de políticas sociais tenderam a ignorar os cuidados não parentais na infância, focalizando, ao invés disso, a previdência social e os benefícios financeiros. Por outro lado, pesquisadores com orientação feminista, interessados em questões de igualdade de gênero, começaram a chamar a atenção para os desafios de política social criados pela necessidade crescente de cuidados não parentais.6,7,8 As respostas dos vários países dividiram-se entre dois regimes: o regime do homem provedor e o regime amigo da mulher, sendo este último mais propenso a desempenhar um papel ativo. Posteriormente, a pesquisa predominante sobre regimes de bem-estar social retomou a questão, focalizando a forma como as políticas de cuidados não parentais refletiam premissas mais amplas sobre os papéis respectivos do Estado, do mercado e da família.a,9 

A literatura sobre o regime de bem-estar social acrescentou dois aspectos centrais. Em primeiro lugar, mostrou que a forma como os países lidam com a demanda por cuidados não parentais tende a refletir pressupostos mais amplos sobre os papéis respectivos do Estado, da família, do mercado e do setor voluntário. Em segundo lugar, ao situar o cuidado não parental no contexto mais amplo de regimes de bem-estar social, demonstrou que o envolvimento do Estado neste campo não se limita a países onde o setor público desempenha um papel central no financiamento e no provimento. A atuação de todos os governos tem impacto sobre os papéis respectivos do Estado, da família, do mercado e do setor comunitário. Alguns governos trabalham para sustentar um mercado de cuidados não parentais por meio do provimento de informações e de deduções fiscais corporativas ou individuais; outros governos adotam políticas que favorecem os cuidados parentais, que podem incluir benefícios generosos para as famílias, licenças maternidade/paternidade prolongadas e programas de pré-escola em parte do dia ou da semana.

Lacunas da pesquisa

Algumas pesquisas vêm sendo realizadas sobre modelos de governança, bem refletidas no Starting Strong, da OCDE, focalizando especificamente a importância do desenvolvimento de políticas coordenadas em nível central e a coordenação dos níveis central e locais para equilibrar os objetivos de equidade e diversidade.11 Reconhecendo o papel crítico a ser desempenhado pelo desenvolvimento de um referencial nacional coerente, o trabalho recente de Peter Moss enfatiza a importância, a um só tempo, de algum grau de autonomia e de capacidade para tornar as creches “locais de prática democrática.”12  Até este momento os estudiosos do estado de bem-estar social têm dado pouca atenção a esse aspecto importante, mas há um interesse crescente a respeito da forma pela qual os diversos arranjos centrais-locais (ou, em estruturas federativas, como o Canadá, centrais-provinciais-locais) afetam a governança do setor de cuidados não parentais.13,14,15 

Compreensivelmente, a pesquisa comparativa sobre políticas de cuidado não parental focalizou sistemas nacionais de provimento. No entanto, a globalização vem exercendo impacto sobre essas políticas, particularmente por meio do desenvolvimento de cadeias globais de provimento de cuidados. Esse aspecto recebeu ainda menos atenção internacional, com exceção parcial de pesquisadores norte-americanos, conscientes do papel crítico desempenhado por imigrantes mal-remunerados na oferta de cuidados infantis financeiramente acessíveis para as famílias.16,17 A pesquisa recente sugere que essa prática não está restrita aos países anglo-americanos “liberais”. Na Europa Ocidental, a combinação de políticas de imigração e novas formas de apoio aos cuidados da criança no lar está promovendo ativamente o recrutamento de imigrantes provedores de cuidado.18 Embora essa talvez seja uma  solução pouco dispendiosa para a demanda crescente por cuidados no Norte, cria-se um conjunto diferente de questões no Sul, onde as crianças são deixadas com avós e outros parentes enquanto suas mães cuidam de crianças no Norte.19,20 

Uma segunda questão relativa à globalização é a influência crescente de organizações internacionais nesse campo. A OCDE empreendeu recentemente dois estudos substanciais: um deles sob a Diretoria de Emprego, Trabalho e Relações Sociais (Babies and bosses – Bebês e patrões); e o outro sob a Diretoria de Educação. O Banco Mundial, a UNESCO e a União Europeia também mostraram interesse crescente no tema, bem como fundações internacionais como a Soros, que vem desempenhando um papel importante na Europa Oriental. São necessárias mais pesquisas sobre as diversas soluções de políticas que vêm sendo oferecidas, desde as mais instrumentais (cuidado não parental como meio de promover a participação da mulher na força de trabalho) até a perspectiva baseada em direitos, articulada pela UNESCO.

Por fim, o trabalho inspirado pelos teóricos pós-estruturalistas desafia a perspectiva desenvolvimentista que contribuiu para uma noção padronizada de qualidade fortemente baseada em indicadores quantitativos. Esta nova linha de pesquisa salienta a importância de “complexidade e multiplicidade, subjetividade e contexto, natureza provisória e incerteza.” b,21  Em função disso, sustenta uma concepção aberta e dialógica de qualidade que se identifica muito com a pedagogia praticada em Reggio Emilia. 

Conclusões

Os especialistas em educação na primeira infância concordam amplamente a respeito das características principais de um sistema de cuidados não parentais adequados, de alta qualidade e inclusivo. No entanto, a criação de um sistema desse tipo depende de apoio governamental eficaz. É nesse ponto que a análise comparativa de políticas de cuidado não parental, baseando-se em instrumentos e conceitos da pesquisa interdisciplinar, pode dar uma contribuição. Os primeiros sistemas de classificação de padrões de políticas indagavam se as políticas existentes promoviam o desenvolvimento de um sistema integrado de educação e cuidados na primeira infância. A pesquisa mais recente, subsidiada pelo trabalho de sociólogos e cientistas políticos, ajudou a situar cuidados não parentais no conjunto mais amplo de relações que orientam os papéis respectivos desempenhados pelo Estado, pela família e pelo mercado.       

Implicações 

A análise comparativa de políticas de cuidado não parental pode ajudar a identifcar as melhores práticas e alguns dos empecilhos institucionais e políticos para sua adoção. No entanto, é importante que essas pesquisas não focalizem apenas iniciativas de cada país. Os arranjos que orientam os papéis respectivos de governos nacionais e locais constituem um componente importante das estruturas de governança, limitando ou promovendo capacidades para a coordenação geral e para o ajustamento a necessidades locais. Além disso, para que seja possível modelar uma cadeia global de cuidados, os pesquisadores precisam dirigir seu olhar para além do nível nacional, e incluir análises sobre as maneiras pelas quais as desigualdades globais se associam às migrações nacionais e aos regimes de bem-estar social. 

Referências

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  3. Kahn AJ, Kamerman SB. Child Care Programs in Nine Countries: a report prepared for the OECD Working Party on the Role of Women in the Economy. Paris, France: OECD; 1976.
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  5. Cohen B, Moss P, Petrie P, Wallace J. An excellent example is A New Deal for Children? Re-forming education and care in England, Scotland and Sweden. Bristol, UK:  Policy Press; 2004.
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  7. Lewis J.Gender and welfare regimes: Further thoughts. Social Politics 1997;4(2):160-177.
  8. Jenson J. Who cares? Gender and welfare regimes. Social Politics 1997;4(2):182-187.
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  11. OECD. Starting strong II: Early childhood education and care. Paris, France: OECD; 2006:13.
  12. Moss P. Bringing Politics into the Nursery: Early Childhood Education as a Democratic Practice. Bernard Van Lees Foundation; 2007: 13. Working papers in Early Childhood Development No. 43.
  13. Wincott D. Paradoxes of  new labour’s social policy: Toward universal child care in europe’s “most liberal” welfare regime? Social Politics  2006;13(2):286-312. 
  14. Turgeon L. Territorial politics and the Development of Early childhood Education and Child Care in France, Great Britain and Sweden. Paper presented at:  the 2007 CPSA Annual Conference. May 31, 2007; Saskatoon, SA.
  15. Jenson J, Mahon R. Bringing Cities to the Table: Child Care and Intergovernmental Relations. Ottawa, ON: Canadian Policy Research Network  Inc; 2005 
  16. Glenn EN. From servitude to service work: historical continuities in the racial division of paid reproductive labor. Signs 1992;18(1):1-43.
  17. Bakan AB, Stasiulis DK. Not one of the family: foreign domestic workers in Canada. Toronto, ON: University of Toronto Press; 1997.
  18. Lister R, Williams F, Anttonen A, Bussemaker J, Gerhard U, Heinen J, Johansson S,  Leira A, Siim B, Tobio C, Gavanas A. Gendering Citizenship in Western Europe: new challenges for citizenship research in a cross-national context. Bristol, UK: Policy; 2007.
  19. Parrenas RS. Care crisis in the Philippines: children and transnational families in the new global economy. In:  Ehrenreich B, Hoschild AR, eds. Global woman : nannies, maids, and sex workers in the new economy . New York, NY: Metropolitan Books, 2003.
  20. Pyle J. Globalization and the increase in transnational care work: the flip side. Globalizations 2006;3(3):297-315.
  21. Dahlberg G, Moss P. Ethics and Politics in Early Childhood Education. New York, NY: Routledge; 2005. 

Notas:

a A tipologia de Esping-Andersen focaliza três sistemas: (a) liberal (tendo como alvo famílias de baixa renda, de risco, ou outras famílias que, na melhor das hipóteses, são incluídas por meio de deduções fiscais individuais ou corporativas); (b) corporativas conservadoras (apoio ao cuidado no contexto do lar); e (c) social-democráticas (provimento e financiamento público de cuidado não parental universal). Para uma classificação alternativa, ver citação (10).

No Canadá, o trabalho de Alan Pence foi muito relevante nesse aspecto.

Para citar este artigo:

Mahon R. Políticas de cuidados não parentais: uma perspectiva comparativa. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Bennett J, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/cuidados-na-infancia-educacao-e-cuidados-na-primeira-infancia/segundo-especialistas/politicas-de. Publicado: Setembro 2008 (Inglês). Consultado em 18 de abril de 2024.

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