Alfabetização e seu impacto sobre o desenvolvimento infantil: Comentários sobre Tomblin e Sénéchal


University of Virginia, EUA
, 2a ed. (Inglês). Tradução: julho 2011

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Introdução

Foi somente na última década que o conceito de “alfabetização” tornou-se o foco central na educação infantil. Anteriormente, era raro que os especialistas considerassem a alfabetização como um aspecto essencial do crescimento e desenvolvimento saudáveis de crianças pequenas. A taxa atual de problemas de leitura em crianças em idade escolar continua a ser inaceitavelmente alta. Estimativas mostram que cerca de 40% das crianças do quarto ano do ensino fundamental lutam com a leitura até mesmo em níveis básicos, e entre essas crianças há uma representação desproporcional de crianças pobres e de minorias étnicas ou raciais.1 A mudança de paradigma da última década – que recebeu um grande impulso com a publicação de 1998 intitulada Preventing Reading Difficulties in Young Children (Prevenção de problemas de leitura em crianças pequenas), do Conselho Nacional de Pesquisa dos EUA – enfatizou, cada vez mais, a educação infantil como o contexto no qual as soluções para esses problemas prementes, provavelmente, serão mais  eficazes. A educação infantil é o momento em que crianças pequenas desenvolvem habilidades, conhecimento e interesse em aspectos baseados no código e no significado da linguagem oral e escrita. Refiro-me aqui a essas habilidades e interesses como habilidades de “pré-alfabetização”, para enfatizar seu papel como precursoras da alfabetização convencional. A ênfase atual na pré-alfabetização como parte essencial da educação infantil baseia-se em dois conjuntos crescentes de pesquisas, que mostram que:

  1. As diferenças individuais de habilidades de pré-alfabetização entre as crianças são significativas – as diferenças iniciais contribuem significativamente para os resultados longitudinais no sucesso em leitura;2 e
  2. A prevalência de dificuldades em leitura é mais suscetível à prevenção do que à remediação, tendo em vista que, uma vez que determinada criança apresenta atraso em leitura no ensino fundamental, é pouco provável que retorne a um progresso saudável.3

Pesquisas e conclusões

Os especialistas Tomblin e Sénéchal oferecem discussões oportunas e relevantes da literatura atual sobre desenvolvimento da pré-alfabetização e suas relações, a curto e longo prazos, com outras competências de desenvolvimento. Minha leitura de seus textos sugere que três pontos importantes requerem maior elaboração: os precursores da decodificação, a relação linguagem-alfabetização, e o papel do temperamento e da motivação.

Em primeiro lugar, a literatura de pesquisa acumulada até hoje a respeito do desenvolvimento inicial da alfabetização e sua relação com os resultados posteriores de desenvolvimento da leitura, identifica três elementos preditivos singulares da competência em leitura: processamento fonológico, conhecimento de letras e palavras impressas e linguagem oral.2 Enquanto os dois primeiros preparam a criança mais diretamente para habilidades em nível de palavras – isto é, decodificação –, o terceiro a prepara para compreender textos, e tem pouco impacto direto sobre a decodificação. Tomblin aponta com precisão que a competência em leitura requer tanto decodificação quanto compreensão, e Sénéchal enfatiza que a criança precisa primeiro “aprender a ler”, para depois poder “ler para aprender”. Os leitores devem reconhecer que a relação entre os dois aspectos da leitura é multiplicativa, o que significa que ambos os termos da equação (Decodificação x Compreensão = Leitura) devem ter valor diferente de zero para que a leitura seja funcional.4  Nenhum dos dois autores enfatiza adequadamente a importância de garantir que a criança desenvolva precursores de decodificação nos anos pré-escolares. A criança nunca será capaz de ler para aprender – isto é, compreender – se não conseguir ser bem-sucedida em decodificação. Crianças que chegam à instrução inicial em leitura com habilidades inadequadas de pré-alfabetização não serão capazes de acompanhar a instrução em decodificação, o que prejudica a transição final para a leitura pelo significado. A educação infantil é o melhor momento para os educadores promoverem as chances das crianças se tornarem leitoras, dando-lhes as competências pré-alfabéticas (conhecimento de letras e palavras impressas e consciência fonológica) que lhes possibilitarão aproveitar a instrução sobre decodificação. 

Em segundo lugar, Tomblin e Sénéchal enfatizam o papel da linguagem oral no desenvolvimento da alfabetização, mas não enfatizam a relação da alfabetização com o desenvolvimento da linguagem. Cada vez mais os especialistas veem a relação integrativa entre linguagem e alfabetização como uma relação recíproca. O envolvimento das crianças em atividades de alfabetização, tais como ler livros de histórias ou ouvir rimas, requer um foco metalinguístico no qual tanto a linguagem oral quanto a escrita é objeto de atenção. O envolvimento continuado das crianças em atividades de alfabetização e sua propensão emergente para considerar a linguagem como objeto de atenção tornam-se vias primárias para o desenvolvimento da linguagem. Uma vez que a criança começa a ler, mesmo no nível mais básico, sua leitura de textos torna-se a maior fonte de novas palavras e conceitos, de sintaxe complexa e de estruturas narrativas que, então, impulsionam seu desenvolvimento de linguagem. Em suma, a alfabetização é um veículo essencial para promover as competências de linguagem das crianças, tanto nos anos pré-escolares quanto durante a escolarização inicial e posterior; e a relação entre linguagem e alfabetização é mais do que uma “rua de mão única”: a linguagem fornece uma base a partir da qual é possível explorar e vivenciar a linguagem escrita, que por sua vez faz avançar o desenvolvimento das competências de linguagem da criança.

Em terceiro lugar, o papel do temperamento e da motivação de influenciar as realizações e as experiências de pré-alfabetização requer uma consideração maior do que a oferecida por Tomblin e Sénéchal. Tomblin nota a sobreposição entre comportamentos de internalização – por exemplo, ansiedade e depressão – e dificuldades de alfabetização; e Sénéchal nota que algumas crianças podem evitar experiências de leitura, principalmente quando se veem como más leitoras. O papel desempenhado pela motivação inicial, pelo autoconceito e pelo temperamento no desenvolvimento da alfabetização exige mais atenção em geral, particularmente quando se considera a maneira de facilitar outras competências internas – por exemplo, processamento fonológico e vocabulário – em programas de prevenção. A maioria dos educadores infantis sabe que a motivação de uma criança em relação à alfabetização é um dos fatores mais importantes para a pré-alfabetização bem-sucedida. Ao procurar experiências de alfabetização – sozinha ou no contexto de interações com outros –, as crianças, essencialmente, implementam suas próprias intervenções em pré-alfabetização! Um conjunto de pesquisas – limitado, porém convergente – mostra que a motivação e o envolvimento das crianças em atividades de alfabetização varia consideravelmente de criança para criança, e se relacionam de maneira singular aos ganhos obtidos nessas atividades.5 Algumas crianças resistem ativamente a experiências de pré-alfabetização, tais como ler um livro de história, e outras, que têm habilidades de linguagem pouco desenvolvidas, ou que não têm experiências de letramento em casa, podem tender mais a resistir a atividades de alfabetização. A literatura científica ainda não mostrou por que algumas crianças resistem a atividades de alfabetização, e de que forma essa resistência se relaciona, de forma mais geral, com o temperamento da criança. Entretanto, as abordagens que visam apoiar a motivação e o envolvimento das crianças em atividades de alfabetização devem ser consideradas como uma das características mais importantes do planejamento de intervenções eficazes. 

Implicações para perspectivas de políticas e serviços

As perspectivas atuais de políticas e serviços baseiam-se em três achados inequívocos da literatura. Primeiro, crianças cuja base de linguagem oral é pouco desenvolvida serão mais vulneráveis para alcançar competência em leitura, o que, por sua vez, inibe o desenvolvimento posterior da linguagem. Segundo, é muito mais difícil remediar problemas de leitura do que preveni-los. Terceiro, é possível mudar as chances de melhores resultados de alfabetização por meio de programas de alta qualidade, intensivos e sistemáticos de pré-alfabetização, oferecidos a crianças em idade pré-escolar antes que se manifestem problemas de leitura. 

Integrando políticas, práticas e pesquisas

Ainda há lacunas significativas na integração de políticas, práticas e pesquisas, e na realização de pesquisas que possam ser prontamente aplicadas a programas no mundo real. Tomblin enfatiza a necessidade de pesquisas futuras sobre os mecanismos que produzem problemas de alfabetização em crianças que têm dificuldades de linguagem. O conjunto de pesquisas sobre esses mecanismos é uma das áreas de pesquisa mais bem-desenvolvidas e bem-fundamentadas nos Estados Unidos, e demonstrou inequivocamente a importância da linguagem oral, do processamento fonológico e do conhecimento de material linguístico impresso como fatores causais associados a capacidade de aprender a ler de uma criança. O que é necessário atualmente é aumentar o foco sobre as melhores maneiras de facilitar conexões entre políticas, práticas e pesquisas, para assegurar a eficácia de esforços para promover, em situações reais, melhores resultados de alfabetização em crianças pequenas, particularmente para aquelas que chegam a esses programas com habilidades de linguagem e de alfabetização pouco desenvolvidas. Sénéchal oferece várias sugestões baseadas em evidências para a promoção de habilidades de pré-alfabetização para crianças pequenas, tais como brincar com jogos de palavras e ler livros. Ainda é necessário examinar cuidadosamente até que ponto essas atividades são eficazes para crianças com deficiências de linguagem, se têm efeitos longitudinais positivos, e se podem ser integradas a intervenções já existentes. 

Qualidade faz diferença?

Formuladores de políticas, profissionais e pesquisadores raramente consideraram de que forma a qualidade das interações adulto-criança focalizadas em letramento poderia fazer diferença, seja ao brincar com jogos de palavras ou ao ler livros. As teorias de desenvolvimento sobre o modo pelo qual as crianças desenvolvem habilidades de pré-alfabetização presumem que a qualidade da interação faz muita diferença: com interações instrucionais caracterizadas por sensibilidade, responsividade e participação não controladora do adulto, as habilidades das crianças progridem mais rapidamente e mais prontamente. A qualidade das interações do professor pode variar imensamente quando provida de intervenções de estimulação da alfabetização baseadas em pesquisas, e essa variação parece fazer muita diferença nos resultados da alfabetização. Ao planejar políticas e serviços para crianças pequenas com o objetivo de reduzir o risco de insucesso em leitura por meio de prevenção, precisamos garantir que as relações e interações que as crianças têm com adultos – que fornecem o contexto no qual se desenvolvem os interesses, as habilidades e os conhecimentos das crianças – sejam da mais alta qualidade.

Referências

  1. National Assessment of Education Progress. The Nation’s Report Card. Disponível em : http://nces.ed.gov/nationsreportcard/. Acesso em 1 de Abril de 2005.
  2. Storch SA, Whitehurst GJ. Oral language and code-related precursors to reading: Evidence from a longitudinal structural model. Developmental Psychology 2002;38(6):934-947.
  3. Juel C, Griffith PL, Gough PB. Acquisition of literacy: A longitudinal study of children in first and second grade. Journal of Educational Psychology 1986;78(4):243-255.
  4. Gough PB, Tunmer WE. Decoding, reading, and reading disability. RASE: Remedial and Special Education 1986;7(1):6-10.
  5. Justice LM, Chow SM, Capellini C, Flanigan K, Colton S. Emergent literacy intervention for vulnerable preschoolers: Relative effects of two approaches. American Journal of Speech-Language Pathology 2003;12(3):320-332.

Para citar este artigo:

Justice LM. Alfabetização e seu impacto sobre o desenvolvimento infantil: Comentários sobre Tomblin e Sénéchal. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Rvachew S, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/desenvolvimento-da-linguagem-e-alfabetizacao/segundo-especialistas/alfabetizacao-e-seu-impacto-sobre. Atualizada: Janeiro 2010 (Inglês). Consultado em 28 de março de 2024.

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