Bases biológicas do desenvolvimento da linguagem


University of Oregon, EUA
(Inglês). Tradução: julho 2011

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Introdução

Os recentes avanços nas técnicas de registro de neuroimagens permitem a investigação das bases neurobiológicas da linguagem e dos efeitos de fatores genéticos e ambientais sobre a organização neural para a aquisição da linguagem nas crianças. Esses métodos têm sido cada vez mais utilizados para caracterizar o curso temporal do desenvolvimento de diferentes subsistemas de linguagem, e para examinar com maior precisão os efeitos da experiência linguística, e os momentos em que esses efeitos ocorrem, sobre o desenvolvimento de diferentes funções da linguagem e sobre os mecanismos neurais que mediam esses subsistemas. 

Do que se trata

A compreensão da neurobiologia do desenvolvimento da linguagem tem implicações importantes para aqueles que procuram otimizar esse desenvolvimento. Os insights gerados por essas pesquisas têm o potencial de oferecer aos pais orientações práticas, baseadas em evidências. Além disso, as evidências produzidas por essas pesquisas podem ajudar educadores e formuladores de políticas a identificar, desenvolver e adotar currículos de linguagem e de alfabetização baseados em evidências para aprendizes do idioma materno e também de uma segunda língua. 

Problemas

As taxas de desenvolvimento da linguagem variam substancialmente entre as crianças, e essa variabilidade é fruto de uma interação complexa entre fatores genéticos e ambientais. Esta pesquisa procura, em parte, caracterizar as relativas contribuições de fatores genéticos e ambientais para essas diferenças no desenvolvimento. Embora existam muitas evidências comportamentais sobre os efeitos de fatores ambientais sobre o desenvolvimento da linguagem, há menos evidências sobre os efeitos de fatores ambientais sobre a neurobiologia do desenvolvimento da linguagem. A maior parte das pesquisas anteriores sobre a neurobiologia da linguagem em adultos, bem como sobre a neurobiologia do desenvolvimento da linguagem, concentrou-se em estudar indivíduos de nível socioeconômico (NSE) médio ou alto. Além disso, atualmente existem poucas evidências que expressem especificamente as contribuições de fatores genéticos e epigenéticos para essas diferenças no desenvolvimento.

Contexto de pesquisa

Há muitas evidências a respeito da neurobiologia da linguagem em adultos de alto NSE, utilizando técnicas de neuroimagem com alta resolução temporal – por exemplo, potenciais evento-relacionados (PRE) – e técnicas complementares com alta resolução espacial – por exemplo, imagem por ressonância magnética funcional (IRMF). Essas técnicas também têm sido utilizadas para investigar as bases neurobiológicas do desenvolvimento da linguagem, embora existam menos evidências sobre os efeitos de fatores ambientais sobre a neurobiologia do desenvolvimento da linguagem. Com base, em grande parte, em um corpo substancial de evidências de estudos comportamentais de desenvolvimento da linguagem, a pesquisa sobre a neurobiologia do desenvolvimento da linguagem está atualmente ampliando seu escopo para incluir crianças (e adultos) de NSE mais diversificado. 

Questões-chave de pesquisa

Uma questão fundamental de pesquisa envolve a utilização de técnicas de neuroimagem para caracterizar o curso temporal do desenvolvimento de substratos neurais que servem diferentes subsistemas de linguagem. Uma questão relacionada envolve a utilização dessas técnicas para caracterizar os efeitos de fatores genéticos e ambientais, e a interação entre os dois no desenvolvimento desses substratos neurais. Um aspecto importante dessa questão é a investigação dos períodos de tempo durante os quais os efeitos de fatores genéticos e ambientais são máximos – isto é, períodos sensíveis – e de que forma esses períodos diferem entre os diferentes subsistemas da linguagem.  

Resultados de pesquisas recentes

Os estudos sobre o desenvolvimento das bases neurobiológicas da linguagem forneceram evidências a respeito dos cursos temporais do desenvolvimento de três subsistemas linguísticos, especificamente a fonologia (sistema de sons do idioma), a semântica (vocabulário e significado das palavras) e a sintaxe (gramática). Essas pesquisas oferecem evidências também de que as respostas cerebrais à linguagem nos primeiros anos de vida são preditoras da proficiência posterior em linguagem. A maior parte das evidências provém de estudos que utilizaram PRE, que é mais adequado para a utilização com crianças pequenas e até com bebês, embora outros métodos de neuroimagem, como IRMF, estejam sendo cada vez mais utilizados com populações mais jovens. 

Muitos estudos comportamentais verificaram que, no primeiro ano de vida, os bebês tornam-se cada vez mais sensíveis a contrastes dos sons da fala que são importantes no seu idioma materno e insensíveis a contrastes fonéticos não importantes.1 Um estudo recente utilizando PRE demonstrou que essa sensibilidade aos contrastes da língua materna reflete-se em uma resposta cerebral que, em adultos, foi evidenciada como um índice neural de discriminação fonética: em bebês de 7,5 meses de idade, a resposta cerebral aos contrastes da língua materna correlacionam-se com a percepção desses contrastes.2 Além disso, um aumento da resposta neural aos 7,5 meses de idade foi preditivo da posterior proficiência em linguagem:  produção de palavras e  complexidade das frases, aos 24 meses de idade, e  extensão média de enunciado, aos 30 meses de idade. Relação inversa foi observada na discriminação de contrastes em idiomas não maternos.

A metodologia de PRE também foi utilizada para examinar a aprendizagem inicial de palavras e as mudanças associadas na especialização neural. Ficou demonstrado que, em crianças de 13 meses de idade, a resposta cerebral a palavras conhecidas é diferente da resposta a palavras não conhecidas, e esse efeito é amplamente distribuído em ambos os hemisférios, esquerdo e direito.3 Aos 20 meses de idade, esse efeito fica limitado ao hemisfério esquerdo, um padrão mais semelhante ao observado em adultos e associado ao aumento de especialização no processamento da linguagem. Além disso, essa maior especialização cerebral está associada, também, a maior capacidade de linguagem em crianças com a mesma idade cronológica.4

Dois estudos recentes com IRMF encontraram efeitos associados a fatores ambientais em áreas cerebrais importantes para o desenvolvimento de habilidades relevantes para a leitura. Verificou-se que para rimar palavras, o grau de especialização em áreas cerebrais frontais esquerdas está correlacionado com o NSE, em crianças de cinco anos de idade.5 Em outro estudo com crianças de cinco anos de idade com desenvolvimento típico, foi observada uma resposta cerebral mais semelhante à de adultos em relação ao processamento de letras durante o primeiro ano de instrução em leitura, ao passo que essa resposta ocorreu com retardo em crianças com risco de desenvolver dificuldades de leitura; no entanto, após três meses na educação infantil e, para as crianças em risco, depois de instrução suplementar para a leitura, os dois grupos apresentaram mudanças na resposta cerebral, aproximando-a do padrão adulto (Yamada,Y., Stevens, C., Neville, H., dados não publicados, 2009).  

Muitos estudos que utilizaram PRE para investigar o processamento de sentenças em adultos mostraram que os subsistemas semântico e sintático são processados por sistemas cerebrais diferentes,6 e que isso se aplica às linguagens falada, escrita e de sinais, que compartilham esses diferentes subsistemas.7 Estudos com pessoas bilíngües que dominam  a linguagem oral e a de sinais  mostram que esses subsistemas distintos exibem graus diferentes de plasticidade, com períodos sensíveis diferentes.8,9 Nesses estudos, são comparadas as respostas cerebrais a sentenças corretas e a sentenças que violam expectativas sintáticas ou semânticas – por exemplo, “Meu tio vai explodir o filme” ou “Meu tio vai vendo o filme”. Em adultos, uma função cerebral altamente especializada e eficiente é indexada por respostas neurais que se originam em áreas cerebrais relativamente específicas ou focais, ao passo que em crianças essas respostas podem estar mais dispersas no cérebro.10-16

Os poucos estudos com PRE sobre processamento de sentenças em crianças sugerem que essa especialização de diferentes sistemas cerebrais ocorre precocemente no desenvolvimento. Os primeiros estudos encontraram uma resposta cerebral semelhante àquela eliciada por violações semânticas em adultos, em crianças de cinco anos de idade e mostraram que essa resposta se tornou cada vez mais rápida e mais especializada com o aumento da idade. 11,12 Esse tipo de resposta cerebral também foi observado em crianças de apenas 19 meses de idade, 13 e foi preditiva da proficiência em linguagem expressiva aos 30 meses de idade. As respostas de PRE a violações sintáticas, em crianças, são qualitativamente diferentes da resposta a violações semânticas, e semelhantes à resposta a violações sintáticas em adultos, embora mais lentas e mais dispersas.14-16 A resposta neural a violações semânticas e sintáticas em crianças de três a oito anos de idade também se mostrou variável como função da proficiência em linguagem e do NSE, com o subsistema sintático mais sensível a essas diferenças.17 O NSE na infância correlacionou-se com a proficiência em linguagem e com a resposta neural  a violações sintáticas em adultos.18

Pesquisas recentes com PRE examinaram, também, um sistema cognitivo que se mostrou importante para o desenvolvimento de habilidades de linguagem: a melhoria do processamento de estímulos auditivos, com atenção seletiva a esses estímulos. O índice PRE relativo a esse melhor processamento é uma resposta cerebral mais forte, em um intervalo de um décimo de segundo, a eventos auditivos quando a atenção está dirigida a eles. 

Além disso, esse efeito da atenção é reduzido em crianças diagnosticadas com comprometimentos específicos de linguagem19 e em crianças com desenvolvimento típico de ambientes com NSE mais baixo.20 É importante notar que esse sistema cognitivo pode ser modificado pela experiência em crianças pequenas. Por exemplo, verificou-se que um treinamento muito intenso aumenta a proficiência em linguagem e os efeitos da atenção sobre o processamento neural em crianças de seis a oito anos.6-8 Ademais, essa resposta cerebral difere segundo os variantes de certos genes que também são sensíveis a diferenças em proficiência em linguagem (Bell, T., Voelker, P., Braasch, M., Neville, H.J., dados não publicados, 2009).22 No entanto, essas diferenças genéticas também interagem com fatores ambientais, e dependem deles (Dennis, A., Bell, T., Neville, H., dados não publicados, 2010). As pesquisas em andamento sugerem que este sistema cognitivo também é suscetível de modificação em crianças de três a cinco anos de idade de ambientes de NSE mais baixo, por meio de programas focalizados de treinamento para pais e crianças (Fanning, J., Sohlberg, M.M., Nevile, H., dados não publicados, 2009).

Lacunas da pesquisa

Embora as pesquisas sobre os efeitos de fatores ambientais sobre a neurobiologia do desenvolvimento da linguagem venham se multiplicando, ainda há poucos estudos publicados. Um próximo passo importante é utilizar os resultados dessas pesquisas para planejar e implementar intervenções baseadas em evidências que melhorem as capacidades necessárias para o desenvolvimento de boas habilidades de linguagem e para determinar em que idade tais intervenções seriam mais eficazes. Pelo menos dois estudos desse tipo estão sendo revisados neste momento (Fanning, J., Sohlberg, M.M., Nevile, H., dados não publicados, 2009; Stevens, C., Fanning, J., Klein, S., Neville, H., dados não publicados, 2009). 

Conclusões

As modernas técnicas de neuroimagem são ferramentas poderosas para a investigação dos efeitos de fatores ambientais, genéticos e epigenéticos sobre a neurobiologia do desenvolvimento da linguagem. As pesquisas que usam essas técnicas em crianças de maior diversidade de contextos socioeconômicos levarão à caracterização mais completa do curso temporal do desenvolvimento dos subsistemas de linguagem e dos efeitos de fatores ambientais sobre esse desenvolvimento.

Implicações para pais, serviços e políticas

Esta pesquisa básica pode impulsionar o desenvolvimento de políticas e serviços baseados em evidências, tais como as intervenções baseadas em evidências que promovem habilidades importantes para a linguagem e outras áreas cognitivas que são relevantes para o sucesso acadêmico (Fanning, J., Sohlberg, M.M., Nevile, H., dados não publicados, 2009; Stevens, C., Fanning, J., Klein, S., Neville, H., dados não publicados, 2009).23-24 Essas pesquisas podem também fornecer aos pais sugestões específicas baseadas em  evidências. Na verdade, é esse o foco de um programa em vídeo, sem fins lucrativos, produzido recentemente pelo Laboratório de Desenvolvimento Cerebral da Universidade do Oregon.a

Referências

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Note 

a Ver o site  do Laboratório de Desenvolvimento Cerebral da Universidade de Oregon, disponível em http://changingbrains.org/. Acessado em 10/03/2010.

Para citar este artigo:

Pakulak E, Neville H. Bases biológicas do desenvolvimento da linguagem. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Rvachew S, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/desenvolvimento-da-linguagem-e-alfabetizacao/segundo-especialistas/bases-biologicas-do. Publicado: Abril 2010 (Inglês). Consultado em 24 de abril de 2024.

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