A complexidade das causas e modificações do desenvolvimento de gênero: Comentário sobre Hanish & Fabes; Leaper; Bigler, Hayes & Hamilton, e Halim & Lindner


The Pennsylvania State University, EUA

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Introdução

Os autores das teses1-4 desta seção examinam as formas nas quais os meninos e as meninas diferem e como essas diferenças se originam em fatores sociais e podem ser reduzidas através de mudanças sociais. Contudo, suas causas e modificações de comportamento são complexas, assim como os vínculos entre ciência e política social.

Estudo e conclusões

a. Pontos sobre os quais concordamos

Tal como documentado nas quatro teses1-4 desta seção, é evidente que diversos agentes sociais (pares, pais e escolas) contribuem diretamente para algumas das diferenças entre os sexos, e que esses agentes incentivam também as crianças a se socializar entre si conforme o gênero. Está claro também que as práticas sociais muitas vezes limitam o desenvolvimento tanto das meninas quanto dos meninos e que as crianças precisam estar preparadas para interagir com pessoas diferentes delas mesmas. Por isso, é importante encontrar maneiras de otimizar o desenvolvimento de todas as crianças. Concordamos, assim, com muitas das interpretações dos autores.

b. Pontos sobre os quais discordamos

Os autores enfatizam os efeitos da socialização nas atitudes e cognições relacionadas ao gênero (refletir sobre o gênero), mas os vínculos entre as atitudes e o comportamento são complexos, e existem muitos estudos em psicologia social sobre os moderadores de tais vínculos.5 As atitudes de gênero estão, algumas vezes, mas nem sempre, relacionadas a comportamento de gênero, e a maioria das associações têm dimensões surpreendentemente modestas.6 Ainda assim, a via causal entre atitudes e comportamentos não está clara. As pesquisas em psicologia social clássica mostram que as atitudes podem mudar em consequência do comportamento, ao invés do contrário.5 Por isso, é importante identificar as condições sob as quais as atitudes relacionadas ao gênero influenciam os comportamentos relacionados ao gênero e são influenciadas por eles.

c. O que está faltando?

As teses nesta seção1-4 abrangem inúmeras influências importantes sobre o desenvolvimento de gênero, com uma ênfase na criança média. Porém, o desenvolvimento de gênero apresenta nuances, dependendo da biologia, do estado do desenvolvimento e do contexto.

O papel da biologia. As crianças não entram no mundo como uma folha de papel em branco, e existem evidências consideráveis de que os fatores biológicos influenciam o desenvolvimento de gênero. Os hormônios sexuais desempenham um papel especialmente proeminente, com a exposição pré-natal a elevados níveis de hormônios masculinos típicos associada a comportamentos que apontam para uma direção tipicamente masculina.7,8 Por exemplo, em comparação com as meninas com níveis típicos de hormônios, as meninas que foram expostas durante a gestação a altos níveis de hormônios masculinos (por exemplo, andrógenos) tendem a se interessar e a se envolver mais em atividades tipificadas como masculinas ao longo de sua vida. Quando crianças, elas brincam mais com brinquedos como blocos lego e carrinhos;9,10 quando adolescentes e jovens adultas, envolvem-se mais em esportes e brinquedos eletrônicos e são mais interessadas em profissões que lidam com coisas, ao invés de pessoas;8 na idade adulta, são mais propensas a escolher atividades profissionais desempenhadas normalmente por homens.11 Isto sugere que ao menos algumas das diferenças entre meninos e meninas típicos derivam da diferença nos níveis de seus hormônios sexuais durante os primeiros estágios de desenvolvimento (e dos correspondentes efeitos desses hormônios no desenvolvimento do cérebro). Há outros aspectos biológicos que têm um papel no desenvolvimento do gênero (por exemplo, hormônios da puberdade e hormônios que circulam na idade adulta).12

Essas influências biológicas no desenvolvimento de gênero indicam que a socialização não acontece em um vácuo. A socialização pode amplificar as predisposições biológicas, de forma que as pequenas diferenças influenciadas pela biologia se tornem grandes diferenças comportamentais. Por outro lado, a socialização pode neutralizar as predisposições biológicas; por exemplo, as meninas que têm interesses tipicamente masculinos como resultado de uma exposição pré-natal a níveis elevados de andrógenos podem ser pressionadas a agir de forma tipicamente feminina, embora pouco se saiba sobre a eficácia de tal socialização.13,14 Esse tópico representa uma oportunidade estimulante de pesquisa; em outra parte, damos exemplos de como o trabalho sobre o desenvolvimento de gênero a partir de uma perspectiva de socialização poderia ser melhorado por meio de uma maior atenção aos processos biológicos.15

O papel do desenvolvimento. É importante lembrar que os aspectos psicológicos do gênero não são estáticos. As características de gênero se desenvolvem ao longo do tempo e os efeitos da socialização podem variar conforme o estado de desenvolvimento das crianças. Por exemplo, as mudanças psicológicas na adolescência podem modificar o efeito das experiências de socialização, considerando a maior autonomia, o contato com os pares e os conflitos entre pais e filhos nesse período em contraste com a infância.16

A função do contexto. Um alto nível de socialização de gênero ocorre dentro das famílias. Podem existir diferenciações consideráveis entre filhos e filhas numa mesma família, ao invés de meninos e meninas em geral, e elas podem depender também da ordem de nascimento das crianças e da situação matrimonial dos pais.17 Consideremos dois exemplos. Na faixa de idade de 7 a 19 anos, a mudança das atitudes relacionadas ao gênero varia conforme o contexto e as características pessoais;18 em média, elas diminuem tradicionalmente com a idade, mas as atitudes tradicionais aumentam entre os primogênitos do sexo masculino com irmãos e pais tradicionais. Quando os maridos têm mais recursos relacionados ao seu trabalho do que a esposas (renda, prestígio profissional), as mulheres têm menos poder na relação marital19 e isso tende a afetar a socialização das crianças, por exemplo, na adoção de modelos. Além disso, o comportamento dos próprios pais muda em função do gênero de seus filhos. Por exemplo, as atividades familiares dos pais, incluindo a participação nas tarefas domésticas, dependem do fato de eles terem uma filha ou um filho; os pais com prole do sexo oposto apresentam menos interesses em atividades de lazer tradicional no momento que seus filhos alcançam a meia infância.20

O contexto se estende além do mundo social imediato da criança. Outros aspectos contextuais, como a cultura, a vizinhança e as organizações sociais, tendem também a ser importantes no desenvolvimento de gênero, e podem moderar a eficácia dos pais, pares e escolas.

Consequências para o desenvolvimento e as políticas

É difícil avaliar as consequências descritas pelos autores devido ao volume limitado de evidências disponíveis para orientar a formulação de políticas. Como as intervenções nem sempre funcionam como planejado, é essencial que elas sejam testadas de modo empírico antes que sejam adotadas de forma mais ampla.

As questões sobre a natureza e direção dos vínculos entre atitude e comportamento indicam que é difícil saber como funcionariam as intervenções propostas nas teses. Se as atitudes não provocam o comportamento, então, alterar atitudes ou estereótipos sobre o gênero não teria o efeito de alterar comportamentos. Por exemplo, as intervenções em sala de aula que enfatizam o gênero aumentam os estereótipos de gênero nas crianças, mas não os seus próprios interesses de gênero estereotipados.21 Isso talvez seja suficiente para alterar atitudes, mas então, nesse caso, o objetivo deveria a alteração de atitudes.

Nem sempre está claro o que é necessário para alterar os comportamentos. Muitas intervenções elaboradas para aumentar a participação das meninas e mulheres nos campos da ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM, em inglês) estão voltadas para a quebra de estereótipos. Uma delas, a Science Cheerleaders (www.sciencecheerleader.com) tem “animadoras de torcida que seguem carreiras científicas que questionam de modo alegre os estereótipos […] e inspiram as jovens a considerar uma carreira científica (STEM) […] e redefinir ao mesmo tempo a imagem dos cientistas e engenheiros”. Porém, existem poucas evidências da eficácia dessa abordagem.

De fato, as intervenções que questionam os estereótipos podem realmente ter efeitos inesperados, porque chamam atenção para o gênero. Tal como observado pelos autores das teses nesta seção, as intervenções têm uma melhor chance de dar resultados ao enfatizar menos (e não mais) o gênero. Contudo, para que isso fique claro, seria importante realizar testes empíricos criteriosos. Sendo assim, devemos ser cautelosos sobre a introdução de intervenções, mesmo se elas fazem sentido, sem antes testá-las cuidadosamente.

É importante também considerar que a eficácia da intervenção pode ser diferente dependendo das pessoas, em função das características pessoais e das experiências sociais, tais como os interesses, os estado de desenvolvimento, a estrutura familiar e outros contextos. Uma intervenção que tenha um efeito benéfico médio pode não ser prejudicial para ninguém, mas deveria assim mesmo ser testada. Quando se dispõe de recursos escassos e tempo limitado, é importante também identificar as crianças que mais provavelmente se beneficiariam com as intervenções.

Uma pergunta importante está relacionada às motivações por trás de uma intervenção. Concordamos que todas as crianças devem ter a oportunidade de fazer aquilo que querem, e que as políticas deveriam se concentrar em combater os estereótipos e preconceitos que reduzem as opções disponíveis às crianças (e aos adultos), além de proporcionar acesso e oportunidades iguais aos recursos. Contudo, algumas crianças podem ainda assim fazer escolhas com base no gênero. O objetivo é eliminar as disparidades de oportunidades ou as diferenças de gênero? Enquanto que alguns programas se empenham em dar oportunidades iguais para ambos os gêneros, outros esforços para aumentar a igualdade entre os gêneros se concentram em proporcionar atividades que façam com que as meninas e mulheres sejam mais parecidas com os meninos e homens (por exemplo, melhorando as habilidades matemáticas e espaciais das meninas), ao invés daquelas que visem fazer com que os meninos e homens sejam mais parecidos com as meninas e mulheres (por exemplo, melhorando nos meninos as habilidades de reconhecimento das emoções). Isso reflete a tendência de muitos países de valorizar mais as características tipificadas como masculinas em relação às características tipificadas como femininas; consideremos, por exemplo, a situação e o salário das profissões dominadas pelos homens em contraste com aquelas das mulheres. É importante considerar como as decisões sobre as políticas relativas ao gênero podem refletir o prestígio diferenciado concedido aos sexos, e se as alterações das políticas deveriam se concentrar em encorajar a similaridade dos gêneros, ou em conceder aos meninos (homens) e meninas (mulheres) o mesmo nível de respeito, status e oportunidades. A promoção do respeito, status e oportunidades é compatível com as abordagens dos direitos humanos.

Referências

  1. Hanish LD, Fabes RA. Peer socialization of gender in young boys and girls. Martin CL, topic ed. In: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Encyclopedia on Early Childhood Development [online]. Montreal, Quebec: Centre of Excellence for Early Childhood Development and Strategic Knowledge Cluster on Early Child Development; 2013:1-5. Disponible sur le site: http://www.child-encyclopedia.com/documents/Hanish-FabesANGxp1.pdf. Page consultée le 23 décembre 2013.
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  3. Bigler R, Hayes AR, Hamilton V. The role of schools in the early socialization of gender differences. Martin CL, topic ed. In: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Encyclopedia on Early Childhood Development [online]. Montreal, Quebec: Centre of Excellence for Early Childhood Development and Strategic Knowledge Cluster on Early Child Development; 2013:1-5. Disponible sur le site: http://www.child-encyclopedia.com/documents/Bigler-Hayes-HamiltonANGxp1…. Page consultée le 23 décembre 2013.
  4. Halim ML, Lindner NC. Gender self-socialization in early childhood. Martin CL, topic ed. In: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Encyclopedia on Early Childhood Development [online]. Montreal, Quebec: Centre of Excellence for Early Childhood Development and Strategic Knowledge Cluster on Early Child Development; 2013:1-6. Disponible sur le site: http://www.child-encyclopedia.com/documents/Halim-LindnerANGxp1.pdf. Page consultée le 23 décembre 2013. 
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Para citar este artigo:

Berenbaum SA, Beltz AM. A complexidade das causas e modificações do desenvolvimento de gênero: Comentário sobre Hanish & Fabes; Leaper; Bigler, Hayes & Hamilton, e Halim & Lindner. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Martin CL, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/genero-socializacao-inicial/segundo-especialistas/complexidade-das-causas-e-modificacoes-do. Publicado: Setembro 2014 (Inglês). Consultado em 20 de abril de 2024.

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