Socialização de gênero dos pais nos filhos


Department of Psychology, University of California, Santa Cruz, EUA

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Introdução

Quando um bebê nasce, a primeira pergunta que o pai e a mãe geralmente fazem é se eles tiveram uma menina ou um menino. A atribuição do gênero se torna uma identidade social poderosa que molda as vidas das crianças. Durante a primeira infância, as meninas e os meninos passam a maior parte do seu tempo em casa, com suas famílias, e procuram a orientação de seu pai, sua mãe, e seus irmãos e irmãs mais velhos. O pai e a mãe ensinam aos seus filhos e filhas as primeiras lições sobre gênero. As possíveis formas que o pai e a mãe podem usar para influenciar o desenvolvimento do gênero nos seus filhos e filhas são a modelagem de papéis e o encorajamento de comportamentos e atividades diferentes para os filhos e as filhas.1

Problemas

Um dos desafios para os pesquisadores que estudam a socialização parental é separar as influências dos pais sobre as crianças e as influências das crianças sobre os pais.2 Cinquenta anos atrás, quando os pesquisadores observaram as correlações entre as práticas parentais e o comportamento das crianças, a inferência típica era de que o pai e a mãe estavam influenciando as crianças. Entretanto, os psicólogos do desenvolvimento reconhecem hoje que as crianças também influenciam o comportamento dos pais. Assim, é preciso ter cuidado ao tirar conclusões sobre as influências causais da socialização parental no desenvolvimento do gênero das crianças.

Principais questões de estudo

Ao avaliar a influência dos pais sobre o desenvolvimento do gênero das crianças, podemos fazer quatro perguntas-chave:

  1. Os pais tendem a ter expectativas de gênero estereotipadas em relação aos seus filhos?
  2. Os pais tendem a modelar comportamentos tradicionais de gênero em seus filhos e filhas?
  3. Os pais tendem a encorajar em seus filhos e filhas comportamentos estereotipados de gênero e a desencorajar comportamentos estereotipados de gêneros cruzados?
  4. As variações das expectativas e dos comportamento dos pais relacionados ao gênero têm influências causais no desenvolvimento do gênero dos filhos e das filhas?

Resultados de estudos

Expectativas de gênero estereotipadas dos pais.

As expectativas em função do gênero podem estar relacionadas com a personalidade (por exemplo, “os meninos são agressivos”), com habilidades (por exemplo, “as meninas são boas na leitura”), e com atividades e funções (por exemplo, “os homens são cientistas”).3 Com o aumento da igualdade entre os gêneros em muitas culturas nas últimas décadas, tem havido um aumento correspondente da aprovação de atitudes igualitárias em relação ao gênero por parte dos adultos. Existem hoje mais variações entre pais e mães que mantêm algumas expectativas tradicionais e aqueles que expressam expectativas igualitárias em relação aos seus filhos e filhas.4,5 Além disso, alguns pais e mães podem apoiar visões igualitárias em algumas áreas (por exemplo, profissões), mas continuam sendo mais tradicionais em relação a outros campos (por exemplo, papéis familiares). Finalmente, o pai e a mãe (especialmente o pai) tendem a ser mais rígidos em suas expectativas em relação aos seus filhos do que em relação às suas filhas.6

Modelagem de papéis vinculados ao gênero por parte do pai e da mãe.

Uma das mudanças sociais importantes que têm ocorrido em muitos países industrializados nos últimos 50 anos foi a inserção das mulheres no mercado de trabalho. Nas sociedades contemporâneas industrializadas, a maioria das mulheres com filhos trabalha fora de casa. A participação média dos homens nos cuidados com os filhos e trabalhos domésticos também aumentou, embora as responsabilidades domésticas continuem a ser assumidas pelas mulheres na maioria das famílias onde o pai e a mãe trabalham fora de casa.6 Os estudos demonstram que a participação do pai nos cuidados com os filhos está negativamente relacionada à estereotipização do gênero das crianças. Através de um envolvimento ativo nos cuidados às crianças, os pais demonstram que o papel do adulto masculino pode incluir apoiar e proteger, assim como as atividades instrumentais.7

A influência potencial da modelagem parental de gênero também tem sido considerada em estudos feitos com crianças criadas por pais ou mães homossexuais.8 Em comparação com as crianças criadas por casais heterossexuais, as crianças criadas por um casal de mesmo gênero tendem a ser menos propensas a adotar alguns estereótipos de gênero. Entretanto, quando os pais de mesmo gênero dividiam o trabalho de forma que um deles assumia a função de 'cuidar da família' e o outro assumia a função de 'chefe da família', seus filhos demonstraram ser mais propensos a expressar visões estereotipadas sobre as funções e ocupações dos adultos.8

Tratamento diferencial dos filhos e filhas por parte do pai e da mãe.

Em muitas partes do mundo, os pais e mães com recursos financeiros limitados têm uma preferência marcada por meninos. Como resultado, a prioridade de utilização de recursos, desde o cuidado com a saúde até a educação, pode ser dada aos filhos, em detrimento das filhas.9 Esse contraste rígido no tratamento diferencial de filhos e filhas, geralmente, não é observado nos países mais ricos. Todavia, nessas sociedades o pai e a mãe utilizam formas comuns para socializar diferentemente meninas e meninos.

De acordo com uma análise detalhada de estudos realizados em países ocidentais, a maneira mais consistente utilizada pelos pais e mães para o tratamento diferencial de meninas e meninos é através do encorajamento de atividades estereotipadas por gênero.10 Isso inclui os tipos de brinquedos que o pai ou a mãe compram ou os tipos de atividades que promovem. Por exemplo, o pai e a mãe são mais propensos a dar carrinhos de brinquedo, bonecos de ação e equipamentos esportivos aos seus filhos, e são mais propensos a dar bonecas, conjuntos de cozinha e brinquedos de vestir às suas filhas. Quando as crianças começam a pedir alguns brinquedos específicos (usualmente ao redor dos 3 anos de idade), não fica muito claro se o pai e a mãe estão formando as preferências das atividades lúdicas de seus filhos ou se eles estão somente concordando com as preferências demonstradas por seus filhos e filhas.11

O pai e a mãe podem também utilizar formas sutis para reforçar os estereótipos de gênero, mesmo quando eles não os encorajam abertamente. Normalmente, isso se observa no uso por parte do pai e da mãe de afirmações 'essencialistas' sobre o gênero. Por exemplo, "as meninas gostam de bonecas" ou "os meninos gostam de futebol". Nesses exemplos, o pai ou a mãe está expressando o que é chamado de estereótipo descritivo (ou seja, descrevendo padrões gerais ou 'essências' sobre cada gênero), ao invés de um estereótipo prescritivo (ou seja, indicando o que deve ocorrer). Os estudos sugerem que até mesmo as mães da classe média que têm atitudes igualitárias em relação ao gênero, frequentemente, usam afirmações 'essencialistas' com seus filhos e filhas em idade pré-escolar. Estas mães, além disso, raramente desafiam os estereótipos de gênero (por exemplo, "não há problema se uma menina quer jogar basquete").12,13

Em geral, em muitos países industrializados, o pai e a mãe são mais flexíveis em relação às atividades lúdicas que consideram aceitáveis para suas filhas do que para seus filhos.6,10 (há relativamente pouca pesquisa sobre atitudes parentais em relação às brincadeiras realizadas pelas meninas e meninos nos países não ocidentais ou não industrializados). Os pais também tendem a ser mais rígidos do que as mães no encorajamento de brincadeiras classificadas por gênero (especialmente com os filhos).6,10 Por exemplo, muitos pais e mães americanos encorajam a participação nos esportes (uma atividade estereotipada como masculina) em suas filhas. Em contrapartida, poucos pais ou mães encorajam seus filhos a brincar com bonecas (uma atividade estereotipada como feminina). Na verdade, muitos pais e mães ficam alarmados quando isso acontece. Entretanto, as evidências sugerem que alguns pais e mães são mais tolerantes com comportamentos classificados como gêneros cruzados nos filhos (homens) do que nas décadas anteriores.4,14

Lacunas do estudo

Será necessário realizar outros estudos para abordar a extensão e a forma como o pai e a mãe influenciam o desenvolvimento do gênero de seus filhos e filhas. Os estudos anteriores foram baseados principalmente em modelos correlacionais que não demonstram causalidade. Algumas associações quanto à maneira como o pai e a mãe se comportam em relação aos seus filhos e filhas biológicos podem ser o resultado de influências genéticas compartilhadas (por exemplo, o nível de atividade é parcialmente herdado).2 Um estudo longitudinal bem realizado seria a melhor alternativa para abordar as possíveis influências causais. É preciso examinar mais profundamente a importância relativa do pai e da mãe em comparação com outros agentes de socialização (grupos sociais, mídia, professores, etc.). Além disso, será necessário realizar outros estudos que considerem as formas indiretas de influência parental. Por exemplo, ao incentivar a participação dos filhos em atividades organizadas (por exemplo, equipes esportivas, feiras de ciências), o pai e a mãe podem influenciar a experiência de seus filhos fora da família.15 Finalmente, precisamos compreender  melhor  como os contextos culturais moldam os papéis de gênero na família e a socialização das meninas e dos meninos.16

Conclusões

Na maior parte do mundo industrializado, durante a última metade do século, ocorreram transformações drásticas nos  papéis das mulheres e dos homens dentro e fora da família. A família tradicional composta de um pai e uma mãe heterossexuais, onde o pai é responsável pelo sustento da família e a mãe desempenha o papel de dona de casa, já não é mais a norma em muitos países industrializados. Ao contrário, a maioria das mães trabalha fora do lar e muitos pais participam dos cuidados com os filhos. Além disso, muitas crianças são criadas por um pai solteiro ou uma mãe solteira ou por pais e mães homossexuais. Apesar dessas mudanças nos papéis, existem relativamente poucas situações parentais realmente igualitárias. Alguns estudos sugerem que mesmo o pai e a mãe com atitudes de gênero igualitárias podem agir diferentemente em relação às suas filhas e filhos.12 Alguns estudos longitudinais sugerem que o tratamento que o pai e a mãe dão a seus filhos e filhas pode ter uma influência em alguns aspectos de seu desenvolvimento de gênero.3,6

Consequências para  pais e mães, prestadores de serviços e formuladores  de políticas

Os pais e mães, prestadores de serviços e formuladores  de políticas talvez tenham interesse em promover papéis de gênero mais flexíveis nas crianças a fim de ajudá-las a desenvolver um repertório mais amplo de habilidades socioemocionais e cognitivas. Embora o pai e a mãe possam ter uma influência no desenvolvimento de gênero dos filhos, algumas vezes seu impacto pode ser superestimado. Considerando-se que o gênero é uma categoria social que organiza virtualmente todos os segmentos da sociedade, existem múltiplas fontes de socialização no desenvolvimento de gênero das crianças. Além do pai e da mãe, estas fontes incluem os outros membros da família, grupos sociais, amigos, a mídia e os professores.11 À medida que a criança vai crescendo e se torna mais autônoma, as influências dos pares e da mídia, com frequência, tornam-se especialmente poderosas.

Durante a primeira infância, o pai e a mãe podem tentar incentivar seus filhos a brincar com uma combinação de brinquedos ou atividades estereotipadas como femininas e masculinas. No entanto, eles poderão descobrir que seus esforços vão contra as atitudes das crianças, uma vez que elas estão expostas a seus pares e aos meios de comunicação. Além disso, o pai e a mãe devem ficar atentos ao tipo de pares com quem seus filhos se  relacionam. Eles podem promover uma flexibilidade maior do papel dos gêneros incentivando atividades organizadas de gêneros mistos onde as meninas e os meninos aprendam a trabalhar juntos como iguais. Finalmente, o pai e a mãe podem fazer um esforço concentrado para discutir e desafiar os estereótipos de gênero com seus filhos e filhas.

Referências

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Para citar este artigo:

Leaper C. Socialização de gênero dos pais nos filhos. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Martin CL, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/genero-socializacao-inicial/segundo-especialistas/socializacao-de-genero-dos-pais-nos-filhos. Publicado: Setembro 2014 (Inglês). Consultado em 25 de abril de 2024.

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