Comentários de Piyadasa Kodituwakku sobre Sandra e Joseph Jacobson e Susan Astley a respeito de SAF/ EAF


University of New Mexico Center on Alcoholism, Substance Abuse and Addictions, EUA
(Inglês). Tradução: fevereiro 2012

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Introdução

Distúrbios do desenvolvimento neural estão associados a padrões particulares de habilidades motoras, cognitivas e sociais. Por exemplo, pessoas com síndrome de Prader-Willie apresentam um padrão característico de competências cognitivas – como habilidades incomuns com quebra-cabeças e processamento auditivo precário – e de comportamentos – como apetite insaciável.1 Parece razoável, portanto, questionar a existência de um perfil neurocomportamental típico associado à exposição pré-natal ao álcool.

O estabelecimento de um perfil neurocomportamental específico para pessoas expostas ao álcool no útero seria tremendamente útil para o diagnóstico, ao planejamento do tratamento e à pesquisa epidemiológica. Estudos epidemiológicos sobre a síndrome alcoólica fetal demonstraram que apenas um terço dos bebês filhos de mães que beberam excessivamente durante a gravidez apresentaram a expressão integral da SAF.2 Além disso, a maioria das pessoas que foram expostas ao álcool no útero não apresenta as características dismórficas clássicas da síndrome alcoólica fetal; os clínicos precisaram se basear em constatações neurocognitivas para identificar pacientes com SAF. No entanto, pesquisas revelaram que os prejuízos no funcionamento sociocognitivo são tão prevalentes entre crianças com SAF sem traços dismórficos quanto entre aquelas que os apresentam.3

A. Contexto de pesquisa: Sandra e Joseph Jacobson

A revisão de Sandra Jacobson e Joseph Jacobson sobre achados neurocomportamentais em crianças expostas ao álcool demonstra claramente que os pesquisadores fizeram progressos significativos no delineamento das funções socioemocionais dessas crianças. Os autores destacam resultados de pesquisas recentes relacionados às três áreas principais desse funcionamento: hiperatividade e atenção, aprendizagem e memória, e funcionamento socioemocional. Os autores concluem que crianças expostas ao álcool apresentam um padrão particular de incapacidades cognitivas, com dificuldades significativas em aritmética, função executiva, aquisição de novas informações e comportamento social.

No entanto, embora esse padrão de dificuldades seja frequentemente encontrado em crianças que foram expostas ao álcool no período pré-natal, ainda não foi estabelecido se é específico deste grupo. De fato, crianças com deficiências de aprendizagem verbal também apresentam habilidades inconsistentes em aritmética, atenção e habilidades sociais. Além disso, a revisão dos Jacobson não inclui outros dados de pesquisa que poderiam ser utilizados no desenvolvimento de planos de políticas e de tratamento. Por um lado, crianças expostas ao álcool no período pré-natal mostram deficiências na capacidade de alterar suas respostas comportamentais a mudanças de reforço (mudança de contexto afetivo) e esses déficits predizem problemas comportamentais avaliados pelos pais.4 Ainda que crianças que apresentam efeitos brandos não tenham prejuízos linguísticos, aquelas que são diagnosticadas com SAF apresentam déficits  acentuados nessa área.5 Os pesquisadores relatam também desempenho deficiente em testes de integração visomotora e de memória visual.6

Implicações para políticas e provimento de serviços

Diversos pontos que foram enfatizados na revisão dos Jacobson têm implicações significativas para políticas e provimento de serviços. Em primeiro lugar, filhos de mães que bebem socialmente durante a gravidez apresentam padrões de déficit cognitivo semelhantes aos observados em crianças com SAF. Essa observação nos remete à questão: existe um limiar seguro para o consumo de álcool durante a gravidez? Embora os pesquisadores tenham colhido evidências a partir de estudos de larga escala7 da existência de tal limiar, essa informação não é essencialmente generalizável, uma vez que se sabe que os efeitos deletérios do álcool sobre o feto variam em função de uma grande quantidade de fatores. Portanto, a abstinência de álcool durante a gravidez parece ser o caminho mais seguro.

Em segundo lugar, os estudos neuropsicológicos realizados com crianças afetadas pelo álcool produziram informações úteis para intervenções baseadas na escola. Por exemplo, a constatação de que crianças expostas ao álcool apresentam deficiência em funções executivas indica que essas crianças têm dificuldade para manter comportamentos dirigidos para metas utilizando informações armazenadas em sua memória de trabalho. Estratégias baseadas em orientação visual externa podem se revelar úteis para a gestão de seu comportamento. Além disso, resultados de um estudo prospectivo, realizado em Seattle, indicam que variáveis específicas estão associadas a melhores resultados em crianças afetadas pelo álcool.8 Essas variáveis incluem viver em um lar estável e afetuoso, ter um diagnóstico precoce, e nunca ter sido submetida à violência. Resultados como esses têm implicações importantes para intervenções precoces e para a alocação de crianças em lares estáveis. Uma vez que condições adversas na família produzem impactos negativos no desenvolvimento cognitivo da criança, as intervenções com a família devem ser consideradas imperativas em termos de política e serviços essenciais, assim como o tratamento de crianças expostas ao álcool.

Mas, uma vez que as raízes dos distúrbios de conduta em crianças expostas ao álcool ainda não estão inteiramente compreendidas, demanda-se um número maior de pesquisas para fornecer dados vitalmente necessários para o desenvolvimento de intervenções específicas para a prevenção de comportamentos violentos nessas crianças.

B. Contexto de pesquisa: Susan Astley

Jones e Smith9 introduziram a expressão síndrome alcoólica fetal (SAF) para descrever um padrão de anormalidade encontrado em um grupo de filhos de mães alcoólatras. As características que definem a síndrome incluem retardo de crescimento, evidências de disfunções do sistema nervoso central (SNC) e um padrão característico de pequenas anomalias faciais. Nos anos que se seguiram à publicação do artigo de Jones e Smith, os profissionais clínicos encontraram uma variabilidade significativa na expressão da síndrome, desde a forma clássica até anormalidades menos importantes. Tendo em mente essa discrepância, Clarren e Smith10 introduziram a nomenclatura diagnóstica suspeitos de efeitos do álcool sobre o feto (EAF) para denotar a expressão parcial da síndrome. Infelizmente, esse diagnóstico se tornou um rótulo genérico para qualquer disfunção comportamental em crianças com suspeita de histórico de exposição pré-natal ao álcool. Na verdade, não se pode supor um elo causal entre a exposição ao álcool e a disfunção cognitiva dessas crianças, uma vez que esta última é afetada por múltiplos fatores. Assim, EAF tornou-se um diagnóstico de validade questionável. Além disso, devido ao uso inconsistente dos critérios diagnósticos aplicáveis entre os profissionais clínicos, a confiabilidade do diagnóstico tornou-se uma proposição particularmente enganosa.11

Conclusões

A abordagem do Código de Quatro Dígitos foi introduzida para tratar de questões de confiabilidade e validade do diagnóstico.12 Os criadores dessa abordagem tomaram uma série de medidas para melhorar sua confiabilidade diagnóstica. Em primeiro lugar, foram desenvolvidas escalas ordinais para quantificar certos aspectos significativos para o diagnóstico – por exemplo, depressão vertical sobre o lábio superior (filtro). Em segundo lugar, cada um dos critérios básicos de diagnóstico – deficiências de crescimento, fenótipo facial SAF, disfunções do SNC e exposição ao álcool – foi avaliado em uma escala de quatro pontos. Em terceiro lugar, cada ponto da escala foi explicitamente definido. A variedade total de combinações dos quatro dígitos gera um total de 256 códigos, que podem ser agrupados em 22 categorias diagnósticas.

A principal conquista da abordagem do Código de Quatro Dígitos foi a melhor confiabilidade diagnóstica por meio da quantificação de aspectos diagnósticos básicos. No entanto, melhor confiabilidade não garante maior validade. Os subtipos de um distúrbio normalmente representam categorias distintas que precisam ser validadas por meio da utilização de múltiplos critérios – por exemplo, comportamento, fisiologia e resposta ao tratamento. No entanto, com excessiva frequência, esses subtipos são tratados como categorias arbitrárias. Meehs reivindica uma aplicação mais rigorosa de critérios diagnósticos específicos: “Considero a classificação como um empreendimento que visa recortar a natureza em suas partes (Platão), identificando categorias de entidades que não são arbitrárias, nem fabricadas pelo ser humano”.13

Implicações para políticas públicas e planejamento de tratamentos

Eu concordaria com Astley. O diagnóstico preciso do espectro total de deficiências provocadas pela exposição ao álcool é essencial para os esforços de prevenção primária e secundária. Com essa finalidade, Astley e Clarren12 melhoraram significativamente a confiabilidade do diagnóstico por meio do desenvolvimento de escalas quantificáveis. No entanto, o problema mais desafiador na área da síndrome alcoólica fetal ainda é a identificação de crianças expostas ao álcool que não apresentam dismorfia – e que constituem a maioria. A identificação desse grupo requer a utilização de instrumentos neuropsicológicos sensíveis e também o controle de variáveis interferentes. Para delinear perfis cognitivos, existe um conjunto crescente de literatura que dá apoio à utilização de testes específicos – em oposição a testes universais, como o de QI – e de dados de processamento de informações, além de escores que refletem resultados finais.14 Resta ver agora se diagnósticos de subtipos baseados em dados obtidos por meio dessas medidas sensíveis serão mais úteis para o desenvolvimento de tratamentos do que os diagnósticos baseados no Código de Quatro Dígitos.

Referências

  1. Udwin O, Dennis J. Psychological and behavioral phenotypes in genetically determined syndromes: a review of research findings. In: O’Brien G, Yule W, eds. Behavioural phenotypes London: MacKeith Press; 1995:90-208. Clinics in developmental medicine, No. 138. 
  2. May PA, Hymbaugh KJ, Aase JM, Samet JM. Epidemiology of fetal alcohol syndrome among American Indians of the Southwest. Social Biology 1983;30(4):374-387. 
  3. Mattson SN, Riley EP, Gramling L, Delis DC, Jones KL. Neuropsychological comparison of alcohol-exposed children with or without physical features of fetal alcohol syndrome. Neuropsychology 1998;12(1):146-153. 
  4. Kodituwakku PW, May PA, Clericuzio CL, Weers D. Emotion-related learning in individuals prenatally exposed to alcohol: an investigation of the relation between set shifting, extinction of responses, and behavior. Neuropsychologia 2001;39(7):699-708. 
  5. Adnams CM, Kodituwakku PW, Hay A, Molteno CD, Viljoen D, May PA. Patterns of cognitive-motor development in children with fetal alcohol syndrome from a community in South Africa [published correction appears in Alcoholism: Clinical and Experimental Research 2001;25(8):1187]. Alcoholism: Clinical and Experimental Research 2001;25(4):557-562. 
  6. Uecker A, Nadel L. Spatial locations gone awry: object and spatial memory deficits in children with fetal alcohol syndrome. Neuropsychologia 1996;34(3):209-223. 
  7. Jacobson JL, Jacobson SW. Prenatal alcohol exposure and neurobehavioral development: where is the threshold? Alcohol Health and Research World 1994;18(1):30-36. 
  8. Streissguth AP, Kanton J, eds. The Challenge of Fetal Alcohol Syndrome: Overcoming Secondary Disabilities. Seattle, WA: University of Washington Press; 1997. 
  9. Jones KL, Smith DW. Recognition of fetal alcohol syndrome in early infancy. Lancet 1973;2(7836):999-1001. 
  10. Clarren SK, Smith DW. The fetal alcohol syndrome. New England Journal of Medicine 1978;298(19):1063-1067. 
  11. Stratton KR, Howe CJ, Battaglia FC, eds. Fetal Alcohol Syndrome: Diagnosis, Epidemiology, Prevention, and Treatment Washington, DC: National Academy Press; 1996. 
  12. Astley SJ, Clarren SK. Diagnosing the full spectrum of fetal alcohol-exposed individuals: introducing the 4-digit diagnostic code. Alcohol and Alcoholism 2000;35(4):400-410. 
  13. Meehl PE. Bootstraps taxometrics: solving the classification problem in psychopathology. American Psychologist 1995;50(4):266-275. 
  14. Bellugi U, Wang PP, Jernigan TL. Williams syndrome: an unusual neuropsychological profile. In: Broman SH, Grafman J, eds. Atypical Cognitive Deficits in Developmental Disorders: Implications for Brain Function Hillsdale, NJ: Laurence Erlbaum Associates; 1994:23-56.

Para citar este artigo:

Kodituwakku P. Comentários de Piyadasa Kodituwakku sobre Sandra e Joseph Jacobson e Susan Astley a respeito de SAF/ EAF. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. O’Connor MJ, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/sindrome-alcoolica-fetal-saf/segundo-especialistas/comentarios-de-piyadasa-kodituwakku-sobre-sandra. Publicado: Fevereiro 2003 (Inglês). Consultado em 25 de abril de 2024.

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