Creche na primeira infância e segurança do apego mãe-bebê


Institute for the Study of Children, Families and Social Issues, Birbeck University of London, Reino Unido
(Inglês). Tradução: julho 2011

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Introdução

Se as experiências de cuidado não maternal afetam o desenvolvimento da criança e de que forma o afetam são questões que têm sido há muito tempo alvo do interesse de pais, formuladores de políticas e pesquisadores do desenvolvimento. Desde a divulgação da teoria do apego de Bowlby,1 o pensamento dela decorrente levou algumas pessoas a supor que a creche, especialmente nos primeiros anos de vida, afetaria negativamente a segurança das relações de apego entre pais e bebês. Para alguns, isso se daria porque a creche envolve separação entre a criança e a mãe (ou outro cuidador principal), e a separação da figura de apego seria inerentemente estressante. A separação poderia também prejudicar a capacidade da própria mãe de oferecer cuidado sensível – o principal determinante da segurança – e dessa forma promover indiretamente a insegurança (isto é, separação → insensibilidade →insegurança). Uma última razão para a expectativa de uma relação entre a creche e a segurança do apego foi a de que a segurança refletiria o bem-estar emocional geral, de forma que efeitos adversos da creche na infância seriam manifestados sob a forma de apego inseguro.

Contexto

As primeiras pesquisas sobre a relação entre cuidado em creche e apego, realizadas frequentemente com crianças de 3 a 5 anos de idade, não ofereceram evidências consistentes em favor da alegação de que a creche prejudicaria a segurança.2 Mas em meados da década de 1980, estudos realizados com crianças bem mais jovens começaram a relatar relações entre creche e insegurança, tal como medida pelo Procedimento da Situação Estranha (PSE) (por exemplo, Barglow, Vaughn & Molitar3). Isto levou Belsky4,5,6 a concluir que a creche na primeira infância, especialmente quando iniciada em regime de tempo integral ou quase integral no primeiro ano de vida,7 era um “fator de risco” no desenvolvimento de apego inseguro na infância (e de agressão e desobediência em crianças de 3 a 8 anos de idade).

Essa conclusão não ficou imune a críticas. Uma delas argumentava que a influência aparente do cuidado precoce e extensivo em creche sobre a insegurança era consequência de outros fatores explicativos (por exemplo, renda familiar), que não estavam sendo adequadamente considerados na pesquisa existente.8 Uma outra afirmava que o fator relevante era a baixa qualidade (não avaliada) do cuidado, e não o momento e a quantidade de cuidado.9 E uma terceira defendia que o comportamento independente apresentado por crianças que frequentavam creches, que não era particularmente enfatizado pelo PSE – devido à familiaridade das crianças com a separação – era erroneamente interpretado como comportamento de evitação, levando à avaliação equivocada das crianças como inseguras-evitativas.10

Questões de pesquisa

Todos concordavam, no entanto, que eram necessárias mais pesquisas para esclarecer as condições nas quais a frequência precoce à creche prejudicaria ou não – ou promoveria – a segurança do apego. Era considerado particularmente importante (a) levar em conta fatores da criança, dos pais e do contexto familiar que poderiam confundir e ser responsáveis por quaisquer efeitos aparentes da frequência à creche na infância; (b) diferenciar e separar efeitos potenciais de diferentes aspectos da experiência de cuidado, particularmente qualidade, quantidade e tipo de cuidado (por exemplo, baseado na instituição versus baseado no lar); e (c) determinar se o cuidado na creche estava associado com menos aflição em relação à separação no PSE ou se o comportamento independente estava sendo erroneamente caracterizado como comportamento de evitação.

Pesquisas recentes

O Study of Early Child Care and Youth Development (SECCYD – Estudo sobre Cuidado na Primeira Infância e Desenvolvimento Juvenil), do NICHD (National Institute of Child Health and Human Development), lançado em 1991 nos Estados Unidos, procurou abordar essas e muitas outras questões.11 O estudo acompanhou mais de 1.300 crianças desde o nascimento, durante os anos da escola primária e da adolescência, realizando avaliações no PSE  aos 15 e aos 36 meses. 

Depois de levar em conta um enorme conjunto de fatores contextuais confundidores potenciais, os resultados mostraram-se extraordinariamente consistentes com a conclusão relativa a fator de risco14 – embora diversos autores tenham sugerido o contrário.15,16 Normalmente, o que se enfatizava é que nenhum aspecto isolado da experiência de creche – quantidade, tipo ou qualidade do cuidado – era, em si e por si mesmo, preditor de segurança do apego, parecendo sugerir ausência de qualquer efeito do cuidado na creche sobre a segurança do apego. No entanto, o que os resultados efetivamente revelaram foi um fenômeno de “risco dual”.17 Embora o mais forte preditor de insegurança aos 15 meses de idade fosse, como seria de esperar, comportamento materno insensível (observado nas idades de 6 e de 15 meses), esse efeito era amplificado se qualquer uma entre três condições diferentes de cuidado caracterizasse a experiência da criança nos primeiros 15 meses de vida: (a) receber, em média, qualquer tipo de cuidado por mais de 10 horas por semana, independentemente da qualidade; (b)  ser atendida em mais de  um tipo de arranjo de cuidado; e (c) estar exposta a cuidado de baixa qualidade. As duas primeiras condições amplificadoras aplicavam-se à maioria das crianças estudadas. Mas apenas a primeira – a quantidade de cuidado – contribuía também para a predição de insegurança do apego aos 36 meses,18 novamente em interação com cuidado materno insensível. Igualmente importante foi a evidência de que bebês que tinham experiência extensiva de cuidado em creche (a) não eram menos estressados no PSE do que outros bebês19 e de que (b) o comportamento aparentemente independente não era erroneamente interpretado como comportamento de evitação.14

Dois outros estudos com amostras relativamente grandes oferecem resultados que discordam do estudo americano. Em uma investigação com mais de 700 crianças israelenses, Sari e colaboradores20 verificaram que “o cuidado em instituições, em si e por si mesmo, aumentava adversamente a probabilidade de bebês desenvolverem apego inseguro com suas mães em comparação com bebês que ou eram cuidados pelas mães, ou eram cuidados individualmente não por um dos pais, mas por um parente, ou eram cuidados individualmente por um cuidador remunerado, ou eram cuidados durante o dia por familiares.” Outros resultados sugeriam que era “a baixa qualidade do cuidado em instituições e a alta proporção bebês/cuidador que explicava esse nível mais alto de apego inseguro entre crianças cuidadas em instituições”16. Em um segundo estudo com 145 bebês primogênitos australianos, Harrison e Unger21 focalizaram mais o emprego materno do que as características do cuidado na creche. A retomada do emprego antes dos 5 meses de vida do bebê – e portanto a utilização mais precoce de cuidado alternativo – foi preditiva de taxas mais baixas de insegurança aos 12 meses de idade em comparação com a volta ao trabalho mais tarde ou mesmo a desistência do trabalho. Mães australianas eram mais propensas a trabalhar em tempo parcial, e não em tempo integral, do que mães americanas e israelenses.

Lacunas de pesquisa

Ainda não está claro por que resultados provenientes de lugares diferentes produzem evidências diferentes. Uma explicação possível estaria relacionada aos sistemas nacionais mais amplos de cuidado infantil nos quais se inclui o cuidado na creche. Aparentemente, serão necessárias pesquisas transnacionais. 

As características das próprias crianças, talvez principalmente sua genética, também merecem consideração. Afinal, há cada vez mais evidências indicando que as crianças diferem substancialmente em sua suscetibilidade a influências ambientais,22  inclusive ao cuidado na creche,23 mostrando-se algumas mais maleáveis do que outras no processo de desenvolvimento. 

Conclusões     

Depois de décadas de debates e estudos, os resultados dos estudos mais abrangentes sobre creche e apego desacreditam fortemente qualquer alegação de que “não existe relação entre cuidado na creche e apego”. Também não são confirmadas asserções de que o PSE é metodologicamente inadequado para a avaliação de efeitos da creche ou que, pelo menos nos Estados Unidos, os efeitos adversos da creche sejam simplesmente função de cuidado de baixa qualidade. Apesar disso, o fato de os resultados de três estudos de larga escala, realizados em diferentes localidades, mostrarem variações substanciais deve deixar claro que provavelmente não há efeitos inevitáveis da creche sobre o apego. Os efeitos parecem depender do contexto social em que o cuidado na creche é experienciado. 

Implicações

O fato de os efeitos detectados da creche sobre a segurança do apego apresentarem variações substanciais conforme o contexto nacional indica a fragilidade de inferências fortes a partir da teoria do apego sobre os possíveis efeitos da creche. Em última instância, o cuidado em creches é um fenômeno multidimensional, de modo que questões como “o cuidado na creche é bom para os bebês?” são excessivamente simplistas. É preciso individualizar fatores como qualidade, tipo, momento e quantidade do cuidado, e os efeitos desses aspectos do cuidado infantil podem variar em função do contexto mais amplo da família, da comunidade, da sociedade e da cultura em que o cuidado ocorre. Em qualquer avaliação sobre os efeitos do cuidado em creche, considerações humanitárias não podem ser ignoradas: é preciso investigar o que querem as mães, os pais, os formuladores de políticas e a sociedade em geral, mas também é preciso perguntar o que querem as crianças? 

Referências

  1. Bowlby J. Attachment and Loss. New York, NY: Basic Books; 1969. Attachment. Vol 1.
  2. Belsky J, Steinberg L. The effects of day care: A critical review. Child Development 1978;49(4):929-949.  
  3. Barglow P, Vaughn B, Molitor N. Effects of maternal absence due to employment on the quality of infant-mother attachment in a low risk sample. Child Development 1987;58(4):945-954. 
  4. Belsky J. Infant day care: A cause for concern? Zero to Three 1986;6(4):1-7.
  5. Belsky J. The “effects” of infant day care reconsidered. Early Childhood Research Quarterly 1988;3(3):235-272. 
  6. Belsky J. Emanuel Miller Lecture: Developmental risks (still) associated with early child care. Journal of Child Psychology and Psychiatry 2001;42(7):845-859.
  7. Belsky J, Rovine M. Nonmaternal care in the first year of life and the security of infant-parent attachment. Child Development 1988;59(1):157-167. 
  8. Scarr S, Phillips D, McCartney K. Facts, fantasies, and the future of child care in the United States. Psychological Science 1990;1(1):26-35.
  9. Phillips D, McCartney K, Scarr S, Howes C. Selective review of infant day care research: A cause for concern. Zero to Three 1987;7:18-21. 
  10. Clarke-Stewart KA. Infant day care: Maligned or malignant? American Psychologist 1989;44(2):266-273. 
  11. NICHD Early Child Care Research Network, ed. Child Care and Child Development: Results of the NICHD Study of Early Child Care and Youth Development. New York, NY: Guilford Press; 2005. 
  12. Belsky J, Vandell D, Burchinal M, Clarke-Stewart KA, McCartney K, Owen MT and The NICHD Early Child Care Research Network. Are There Long-term Effects of Early Child Care? Child Development 2007;78(2):681-701.
  13. Vandell DL, Belsky J, Burchinal M, Steinberg L, Vandergrift N, the NICHD Early Child Care Research Network. Do Effects of Early Child Care Extend to Age 15 Years? Child Development. In press. 
  14. NICHD Early Child Care Research Network The effects of infant child care on infant-mother attachment security: Results of the NICHD Study of Early Child Care. Child Development 1997;68(5):860-879.
  15. Allhusen VD, Clarke-Stewart KA, Miner JL. Childcare in the United States: Characteristics and consequences. In: Melhuish E, Petrogiannis K, eds. Early Childhood Care and Education: International Perspectives. London, UK: Routledge; 2008:7-26.
  16. Love M, Harrison L, Sagi-Schwartz A, van Ijzendoorn MH, Ross C, Ungerer JA, Raikes H, Brady-Smith C, Boller K, Brooks-Gun JC, Jill K, Ellen E, Paulsell D, Chazen-Cohen R. Child Care Quality Matters: How Conclusions May Vary with Context. Child Development 2003;74(4):1021-1033.
  17. NICHD Early Child Care Research Network The effects of infant child care on infant-mother attachment security: Results of the NICHD Study of Early Child Care. Child Development 1997;68(5):876.
  18. NICHD Early Child Care Research Network. Child care and family predictors of preschool attachment and stability from infancy. Developmental Psychology 2001;37(6):847-862. 
  19. Belsky J, Braungart J. Are insecure-avoidant infants with extensive day-care  experience less stressed by and more independent in the strange situation? Child Development 1991;62(3):567-571.
  20. Sagi A, Koren-Karie N, Gini M, Ziv Y, Joels T. (2002). Shedding further light on the effects of various types and quality of early child care on infant-mother attachment relationship: The Haifa Study of Early Child Care. Child Development 2002;73(4):1166.
  21. Harrison LJ, Ungerer JA. Maternal employment and infant-mother attachment security at 12 months postpartum. Developmental Psychology 2002;38(5):758-773.
  22. Belsky J, Bakermans-Kranenburg M, van Ijzendoorn M. For Better and for worse: Differential susceptibility to environmental influences. Current Directions in Psychological Science 2007;16(6):305-309.
  23. Pluess M, Belsky J. Differential susceptibility to rearing experience: the case of childcare. Journal of Child Psychology and Psychiatry 2009:50(4):396-404.
 

Para citar este artigo:

Belsky J. Creche na primeira infância e segurança do apego mãe-bebê. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. van IJzendoorn MH, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/apego/segundo-especialistas/creche-na-primeira-infancia-e-seguranca-do-apego-mae-bebe. Publicado: Outubro 2009 (Inglês). Consultado em 28 de março de 2024.

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