Resiliência na primeira infância e seu impacto sobre o desenvolvimento psicológico da criança


Columbia University, EUA
(Inglês). Tradução: junho 2011

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Introdução

Resiliência é um processo ou um fenômeno que reflete uma adaptação relativamente positiva, apesar de experiências de risco significativo ou de trauma. A resiliência envolve julgamentos sobre a vida das pessoas. Nunca é medida diretamente, mas sim inferida, com base no conhecimento de duas condições: (a) que uma pessoa funciona razoavelmente bem; e (b) que essa condição acontece apesar de adversidades significativas.1-4

É preciso enfatizar que resiliência não é um traço característico do indivíduo. As crianças podem funcionar bem apesar do risco, graças a vários recursos – muitos deles externos à sua própria personalidade –, tais como o apoio dos pais, dos avós ou de comunidades estreitamente ligadas, que funcionam bem. De fato, é prudente evitar usar o termo resiliente como adjetivo – por exemplo, “crianças resilientes” –, uma vez que essa forma sugere implicitamente uma capacidade pessoal inata de “evitar” riscos. É preferível usar expressões como “adaptação resiliente” ou “padrão resiliente”, que não trazem nenhuma sugestão sobre quem ou o que pode ser responsável pela competência da criança.

Resiliência não é um fenômeno do tipo “tudo ou nada”, nem é determinada no tempo.2,5 Crianças podem mostrar pontos fortes em algumas áreas, como prontidão escolar,  mas, ao mesmo tempo, apresentar dificuldades em outras áreas, como interação com outras crianças. Da mesma forma, indivíduos em risco podem ter desempenho excelente em determinado momento, porém quando precisam enfrentar adversidades contínuas – ou quando não contam com o apoio adequado para enfrentá-las – podem vacilar, demonstrando considerável deterioração.

Do que se trata 

A pesquisa sobre resiliência é altamente relevante para aqueles que procuram promover  excelência no desenvolvimento da criança, porque (a) atualmente, muitas crianças enfrentam condições de alto risco; e (b) uma proporção substancial das crianças mostra desenvolvimento socioemocional adequado. Compreender os antecedentes dessas trajetórias que superam as expectativas tem relevância óbvia para provedores de serviços e formuladores de políticas. No trabalho com grupos em risco, é preferível promover o desenvolvimento do funcionamento resiliente nos primeiros anos de vida do que implementar tratamentos para corrigir distúrbios já cristalizados. O conhecimento sobre processos resilientes em circunstâncias de risco específicas pode ser crucial para compreender questões particulares que demandam atenção mais urgente no contexto de tipos específicos de adversidades.6,7

Questões-chave de pesquisa

Os pesquisadores da resiliência examinaram os diversos contextos de risco, desde pobreza da família e violência da comunidade até doença mental dos pais e maus-tratos da criança.5 Normalmente, o contexto de pesquisa envolve a identificação de um grupo de crianças que enfrentam um risco particular, identificando aquelas que apresentam resultados relativamente positivos, e determinando os tipos de fatores que distinguem essas crianças daquelas que apresentam piores resultados. Portanto, a questão-chave de pesquisa é: “Por que algumas crianças em condições de alto risco funcionam relativamente bem, enquanto outras sucumbem?”

 “Funcionar relativamente bem” normalmente reflete o grau em que a criança consegue fazer o que a sociedade espera dela nesse estágio de desenvolvimento. Para crianças pequenas, por exemplo, isso inclui comportamentos que refletem forte apego à mãe; e para crianças de 5 anos de idade, significa a capacidade de interagir adequadamente com pares e com adultos no contexto da educação infantil. Mais uma vez, com crianças pequenas, frequentemente é mais apropriado focalizar não só a forma como a própria criança está funcionando, mas também, e talvez mais intensamente, a capacidade da família de promover e sustentar seu bem-estar. Obviamente, a criança pequena é limitada em sua capacidade de recorrer às suas forças inatas para enfrentar adversidades; o que é crítico é a capacidade dos pais para protegê-la contra as principais pressões do ambiente e para fornecer-lhe a educação e o apoio que são essenciais para revelar habilidades de enfrentamento eficazes no longo prazo.

Principais resultados de pesquisas

Há muitas trajetórias para a adaptação resiliente. No entanto, um tema central que transcende diversas condições de risco é a presença de um relacionamento forte, de apoio, com ao menos um adulto.5 Quando o pai ou  mãe de uma criança tem uma doença mental, um relacionamento próximo com o outro genitor – ou ainda com um dos avós ou outro parente – pode ser extremamente benéfico. Relacionamentos afetuosos, de apoio e consistentes fora da família também podem ser úteis, tais como relacionamentos com cuidadores, em centros de cuidados infantis, ou com professores, nas escolas. Naturalmente, os efeitos salutares de qualquer relacionamento dependem do grau de continuidade e de consistência. Obviamente, os próprios pontos fortes da criança também contribuem para a adaptação resiliente. Para crianças em risco, trajetórias positivas são mais prováveis na presença de atributos como alto nível de inteligência, temperamento descontraído, carisma e habilidades sociais.8 No entanto, um aspecto crítico que deve ser lembrado é que muitos desses “pontos fortes pessoais” são vulneráveis aos desafios do ambiente. Em relação à inteligência, por exemplo, crianças que crescem em condições interpessoais estéreis e negligentes – como os orfanatos romenos – mostram prejuízos significativos no desenvolvimento intelectual. Esses deficits são substancialmente reduzidos após um período vivendo em lares adotivos.9

Os pesquisadores da resiliência dão atenção cada vez maior ao papel fundamental da biologia na resiliência e na vulnerabilidade. Algumas crianças mostram maior reatividade fisiológica do que outras a fatores estressantes, o que se manifesta, por exemplo, em seus níveis de cortisol, o hormônio do estresse.10 Cientistas documentaram o papel crítico da regulação da emoção – a capacidade de modular emoções em resposta a situações estressantes – por meio de índices, como ritmo cardíaco.11 Uma área de pesquisa relacionada mostra um acúmulo de evidências de  contribuições de fatores genéticos. Como ilustração, entre crianças que tinham sofrido maus-tratos, a probabilidade de desenvolver depressão ao longo da vida era mais baixa quando na presença de um genótipo que permite o transporte eficiente da serotonina.12

Implicações

Quais são as implicações desses resultados para intervenções e políticas? Em primeiro lugar, e o mais importante, os pais devem empreender esforços conjuntos para prover cuidados de alta qualidade para crianças pequenas, devem começar esse trabalho o mais cedo possível, e devem mantê-lo pelo maior tempo possível. Nesse aspecto, é exemplar o trabalho de Olds e colegas, em que enfermeiras visitam as casas de gestantes em risco e fornecem apoio na gravidez e nos primeiros anos de vida da criança.13 Para crianças em centros de cuidados infantis, é essencial contar com cuidadores afetuosos e consistentes, além de fornecer apoio às mães dessas crianças. Para crianças com vulnerabilidades biológicas, como alta reatividade a estresse, ou inteligência abaixo da média, o apoio aos pais torna-se crítico. Obviamente, é difícil mudar o temperamento de uma criança. O que pode ser feito é assegurar-se de que as mães tenham recursos suficientes para manter o afeto e a consistência nas programações diárias necessárias para crianças com temperamento mais difícil.

Os recursos necessários para cuidados eficazes incluem não só recursos financeiros – dinheiro para fornecer alimento, abrigo, educação e cuidados de saúde –, mas também recursos psicológicos. Depressão ou ansiedade crônica danifica seriamente a capacidade da mãe para cuidar de sua criança, independentemente de seus recursos materiais. E sabemos que crianças de mães deprimidas correm alto risco de resultados negativos. Se nosso objetivo último é maximizar o bem-estar de crianças pequenas, devemos dar alta prioridade para a atenção à saúde mental e às necessidades de cuidados parentais.

Além de fortalecer relacionamentos na família, é fundamental também reforçar redes nas comunidades, o que pode ajudar a sustentar os ganhos gerados por intervenções externas. Em comunidades de baixa renda, por exemplo, no momento em que os pais já não recebem apoio de agências externas, o apoio dentro da comunidade pode ser fundamental para promover o bem-estar continuado.6

Algumas vezes, certos processos de risco podem ser relativamente específicos de determinados ambientes, por isso também é preciso dar atenção especial aos riscos “específicos do contexto”. Os exemplos incluem exposição à violência da comunidade em ambientes urbanos e experiências de discriminação vividas por crianças de minorias étnicas. Além de assegurar relacionamentos fortes com ao menos um cuidador, as intervenções devem levar em consideração também esses riscos específicos.

Em conclusão, a resiliência é um fenômeno que representa adaptação positiva apesar do risco. Não é um atributo pessoal da criança, nem é permanente. Para alcançar e sustentar a adaptação resiliente, a criança deve receber apoio dos adultos em todos os contextos, o que implica a garantia de que os primeiros cuidadores – geralmente, a mãe – tenham os recursos adequados para fornecer cuidados de mais alto nível – não só recursos financeiros, mas também recursos psicológicos. Do ponto de vista da intervenção, o princípio central que provém da pesquisa existente é que a resiliência está baseada fundamentalmente em relacionamentos consistentes. Portanto, o caminho mais rápido para promover adaptação resiliente é garantir que a criança receba cuidados e apoio consistentes, o mais cedo possível, das pessoas que são primariamente responsáveis por seus cuidados.

Referências

  1. Luthar SS, Cicchetti D, Becker B. The construct of resilience: A critical evaluation and guidelines for future work. Child Development 2000;71(3):543-562. 
  2. Masten AS. Ordinary magic: Resilience processes in development. American Psychologist 2001;56(3):227-238.
  3. Rutter M. Resilience reconsidered: Conceptual considerations, empirical findings, and policy implications. In: Shonkoff JP, Meisels SJ, eds. Handbook of early childhood intervention. 2nd ed. New York, NY: Cambridge University Press; 2000:651-682.
  4. Werner EE. Protective factors and individual resilience. In: Shonkoff JP, Meisels SJ, eds. Handbook of early childhood intervention. 2nd ed. New York, NY: Cambridge University Press; 2000:115-132.
  5. Luthar SS, Zelazo LB. Research on resilience: An integrative review. In: Luthar SS, ed. Resilience and vulnerability: Adaptation in the context of childhood adversities. New York, NY: Cambridge University Press; 2003:510-549.
  6. Luthar SS, Cicchetti D. The construct of resilience: Implications for interventions and social policies. Development and Psychopathology 2000;12(4):857-885.
  7. Masten AS, Coatsworth JD. The development of competence in favorable and unfavorable environments: Lessons from research on successful children. American Psychologist 1998;53(2):205-220.
  8. Tolan P, Gorman-Smith D, Henry D. Supporting families in a high-risk setting: Proximal effects of the SAFE children preventive intervention. Journal of Consulting and Clinical Psychology 2004;72(5):855-869.
  9. Rutter M. Developmental catch-up, and deficit, following adoption after severe global early privation. Journal of Child Psychology and Psychiatry and Allied Disciplines 1998;39(4):465-476.
  10. Gunnar MR, Davis EP. Stress and emotion in early childhood. In: Lerner RM, Easterbrooks MA, Mistry J, eds. Developmental psychology. New York, NY: John Wiley and Sons; 2003:113-134. Weiner IB. Handbook of psychology; vol 6.
  11. Curtis WJ, Cicchetti D. Moving research on resilience into the 21st century: Theoretical and methodological considerations in examining the biological contributors to resilience. Development and Psychopathology 2003;15(3):773-810. 
  12. Caspi A, Sugden K, Moffitt TE, Taylor A, Craig IW, Harrington H, McClay J, Mill J, Martin J, Braithwaite A, Poulton R. Influence of life stress on depression: Moderation by a polymorphism in the 5-HTT gene. Science 2003;301(5631):386-389.
  13. Olds DL. Prenatal and infancy home visiting by nurses: From randomized trials to community replication. Prevention Science 2002;3(3):153-172.
  14. Reynolds AJ. Success in early intervention: The Chicago child-parent centers. Lincoln, Neb: University of Nebraska Press; 2000.

Para citar este artigo:

Luthar SS. Resiliência na primeira infância e seu impacto sobre o desenvolvimento psicológico da criança. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Masten AS, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/resiliencia/segundo-especialistas/resiliencia-na-primeira-infancia-e-seu-impacto-sobre-o. Publicado: Novembro 2005 (Inglês). Consultado em 19 de abril de 2024.

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