Estados de vigília e desenvolvimento psicossocial e emocional. Comentários sobre os textos de Anders, Thoman e Holditch-Davis


Hôpital Debrousse, Lyon, França
, Ed. rev. (Inglês). Tradução: julho 2012

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Introdução

Não foi fácil a tarefa de avaliar criticamente os textos de três pesquisadores tão eminentes na especialidade de sono na infância como Thomas F. Anders, Evelyn B. Thoman e Diane Holditch-Davis, principalmente porque seus textos resumem o “estado da arte” no estudo do desenvolvimento de estados de sono-vigília do período fetal aos primeiros anos de vida, das relações entre estados de sono-vigília, o ambiente e o desenvolvimento psicossocial, emocional e cognitivo das crianças, e das relações entre o desenvolvimento dos estados de sono-vigília e os distúrbios do sono.

Pesquisas e conclusões

Os estudos sobre bebês prematuros revistos por Diane Holditch-Davis mostram que a organização dos estados de sono-vigília já é altamente dependente do ambiente: da alternância de luz e escuro, dos níveis de ruído, da relação mãe-filho, da dor etc. Ela aponta que os estados de sono-vigília são a única maneira pela qual o bebê prematuro comunica aos outros suas necessidades e seu nível de bem estar. Ela nota também que uma relação pais-bebê muito próxima, especialmente no caso da mãe, é um organizador significativo do ritmo de sono-vigília e da própria estrutura do sono. Os estudos citados por ela evidenciam como é importante evitar perturbar o sono de um bebê prematuro; um dos estudos efetivamente observa que algumas mães, sem dúvida muito concentradas em seus bebês recém-nascidos, tendem a ajustar sua interação com a criança em função dos estados de sono-vigília da criança.  Por outro lado, tenho mais reservas a respeito de estudos que enfatizam as relações entre padrões de sono-vigília em prematuros ou mesmo em bebês a termo e seu desenvolvimento neurológico em longo prazo, e penso que os resultados de alguns estudos precisam ser colocados em perspectiva, como faz Diana Holditch-Davis ao reconhecer que têm pouca  relevância  clínica  e  que  apenas  estudos longitudinais podem identificar fatores de risco confiáveis. Penso também que é muito importante evitar a confusão entre anormalidades do EEG que, em bebês prematuros e a termo, são frequentemente expressões de danos neurológicos e, portanto, preditores importantes do desenvolvimento motor, mental e/ou sensorial e, por outro lado, anormalidades nos padrões de sono-vigília que em geral inicialmente são funcionais, relacionados a causas metabólicas (muitas vezes temporárias) ou ambientais. 

Evelyn B. Thoman e Thomas F. Anders descrevem a fenomenologia de vários estados de sono-vigília e seus estágios de desenvolvimento: a individualização dos diferentes estágios do sono NREM, a ontogênese do ritmo de sono-vigília. Enfatizam corretamente as relações complexas entre determinantes biológicos da maturação dos estados de sono-vigília, dos distúrbios de sono e do comportamento cognitivo da criança durante o dia, as correlações estreitas entre o sono deficiente na infância, o estresse parental e as relações pais-filhos, e o fato de que eventos sociais e emocionais no decorrer do dia podem ser organizadores ou desorganizadores dos padrões do sono noturno.

Thomas F. Anders levanta diversas questões centrais que ainda estão por ser respondidas:

  • Qual é o papel de fatores biológicos no desenvolvimento pós-natal dos ritmos de sono-vigília?
  • Qual é o impacto de fatores psicossociais no desenvolvimento dos ritmos de sono-vigília?
  • Os distúrbios do sono em crianças pequenas relacionam-se com interações entre fatores biológicos e psicossociais?

Evelyn B. Thoman formula exatamente as mesmas questões: crianças pequenas acordam frequentemente porque seus cérebros são imaturos, devido a problemas relacionais ou por causa de uma fragmentação anormal do sono que requer investigação médica?

Embora tenha me impressionado o montante de dados apresentados nos três textos, até certo ponto me desapontei com a ênfase limitada que os autores deram ao desenvolvimento dos ritmos circadianos, ao estabelecimento de ritmos dia-noite que não dependem apenas de maturação cerebral, mas também  de inúmeros fatores ambientais, e mais particularmente da relação pais-filho (se oferece ou não pistas temporais).

O componente circadiano está presente a partir do período neonatal e até mesmo do pré-natal, mas é mascarado por um ritmo ultradianodominante.1-5 Diversos estudos6-9  que examinaram o desenvolvimento do ritmo sono-vigília nos primeiros meses de vida (frequentemente de uma única criança, em geral primogênita e alimentada ad libitumb) mostraram que é apenas aos três ou quatro meses de idade que os ritmos de sono-vigília evoluem de um ritmo ultradiano de três a quatro horas nas primeiras semanas de vida para um ritmo mais estabilizado de 24 horas por volta dos três ou quatro meses. Estudos mais recentes com amostras maiores1,10-13 indicam que um ritmo circadiano estável de 24 horas aparece muito mais cedo, cerca de 45 semanas depois da concepção, sem diferenças entre bebês prematuros e a termo.11 Isto significa que não demora muito para que períodos mais longos de sono e vigília ocorram em momentos regulares, os de vigília durante o dia e os de sono à noite. Todos os ritmos biológicos circadianos (batimentos cardíacos, temperatura, cortisol, melatonina etc) aparecem nos primeiros meses de vida.10,14-22 Todos esses estudos indicam uma variabilidade interindividual considerável na taxa de estabelecimento de um ritmo sono-vigília estável a cada 24 horas, e enfatizam a importância de pistas temporais, fatores ambientais que regulam todos esses ritmos, inclusive os biológicos. 

Para o feto, são importantes as pistas temporais da mãe: não apenas a secreção de cortisol e melatonina, mas também o ritmo materno de atividade/repouso.21-23 Nos primeiros dias de vida, a correspondência estreita entre a atividade da mãe e do bebê, e também a alternância entre luz e escuro35 favorecem a emergência de um ritmo dia-noite. Nas primeiras semanas de vida, os sincronizadores sociais (momentos regulares de alimentação, momentos de interação, horários de sono) desempenharão um papel importante para garantir que os ritmos biológicos e de sono-vigília oscilem em um ciclo estável de 24 horas.26,27

Implicações para políticas e serviços

Pode-se concordar inteiramente com as conclusões dos autores sobre:

  • a alta frequência de distúrbios do sono em crianças pequenas, a probabilidade de efeitos relativamente significativos desses distúrbios no desenvolvimento psicossocial, emocional e cognitivo das crianças e no sono de seus pais, com os custos econômicos decorrentes; 
  • a necessidade de estudos mais aprofundados sobre o desenvolvimento dos ritmos de sono-vigília, que deem mais atenção à estrutura do sono e à sincronização do ritmo sono-vigília e outros ritmos circadianos: em bebês a termo e em prematuros, e em crianças que são consideradas pelos pais como tendo sono tranquilo ou agitado. 
  • a necessidade de estudos sobre a microestrutura do sono de maneira a formular padrões sobre a frequência de excitações mínimas em bebês e crianças. Esses padrões são essenciais para a compreensão da redução da capacidade de excitação entre dois e seis meses de vida, um período de alto risco de morte súbita em bebês. Poderiam também explicar a tendência de crianças de nove meses a três anos a acordar frequentemente, e ajudar a esclarecer as relações entre déficits cognitivos e a síndrome de apneia do sono em crianças. 

Esses estudos serviriam também para:

  • Identificar os fatores de risco de distúrbios persistentes do sono a partir dos três ou quatro meses (quando se espera que os recém-nascidos consigam ter “uma boa noite de sono”);
  • avaliar as possíveis consequências fisiológicas, psicológicas ou intelectuais dos distúrbios do sono na infância;
  • estabelecer padrões para o desenvolvimento da duração do sono diurno e noturno, horários de dormir e de acordar e o número de cochilos durante a infância; e 
  • oferecer bases para o tratamento comportamental, médico e/ou psicológico de crianças com distúrbios de sono.

Os distúrbios do sono na infância são suficientemente frequentes para constituírem um problema sério de saúde pública. Portanto, é da maior importância que os formuladores de políticas:

  • invistam em estudos epidemiológicos sobre os ritmos dia/noite das crianças, se possível associados a estudos sobre a estrutura de comportamento diurno e relativo ao sono; os pesquisadores devem utilizar os instrumentos e os marcadores menos invasivos (diários de sono, registros em vídeo, monitoramento actigráfico, registro do sono em casa, exames de saliva e de urina para obter marcadores biológicos); e
  • promovam programas de educação que poderiam começar já durante o monitoramento da gravidez de forma a prevenir distúrbios de sono depois do nascimento.

Referências

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Notas

aNT: circadiano – ciclos que ocorrem entre 20 e 28 horas; ultradiano: ciclos que ocorrem em períodos menores do que 20 horas.  

bNT: Ad libitum – à vontade, sempre que solicitado.

Para citar este artigo:

Challamel MJ. Estados de vigília e desenvolvimento psicossocial e emocional. Comentários sobre os textos de Anders, Thoman e Holditch-Davis. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Petit D, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/sono/segundo-especialistas/estados-de-vigilia-e-desenvolvimento-psicossocial-e-emocional-comentarios. Atualizada: Janeiro 2006 (Inglês). Consultado em 25 de abril de 2024.

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