Desenvolvimento cognitivo na aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras


Miami University, EUA
(Inglês). Tradução: fevereiro 2018

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Introdução

O papel importante da aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras na promoção do desenvolvimento cognitivo de crianças pequenas tem sido discutido por antigos teóricos, educadores e pesquisadores como Platão (p. 24),1 Froebel2 e Gesell;3 teóricos e pesquisadores posteriores, como Bruner,4 Erikson,5 Piaget6 e Vygotsky,7 e teóricos e pesquisadores mais recentes, como Bodrova e Leong,8 DeVries,9 Fein10 e Singer & Singer.11 Entretanto, nos últimos anos, o tempo destinado à aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras para crianças ativas tem sido reduzido em muitas salas de aula da pré-escola, com crescente ênfase na prontidão das habilidades acadêmicas. Para completar, alguns educadores, responsáveis pela determinação de currículos escolares e de políticas, além do público em geral, têm diminuído a importância dos jogos e brincadeiras na aprendizagem. A tese desta discussão é que a aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras proporciona um excelente ambiente para a promoção do desenvolvimento cognitivo das crianças pequenas, especialmente para as habilidades de raciocínio essenciais para a profundidade cognitiva. Como as evidências da pesquisa estão misturadas com o papel dos jogos e brincadeiras na promoção desse desenvolvimento, são necessários mais estudos longitudinais sólidos para investigar a extensão e os efeitos cognitivos de longo prazo da aprendizagem precoce por meio de jogos e brincadeiras.

Assunto

O papel dos jogos e brincadeiras como meio de aprendizagem12 tem sido defendido por diversos profissionais da primeira infância desde que os programas pré-escolares surgiram, no início do século 20. Entretanto, sempre foi discutido o papel desempenhado pela aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras na promoção do desenvolvimento cognitivo de crianças pequenas, especialmente em áreas específicas como o aprendizado da leitura ou da matemática.

Problemas

Embora seja louvável a atual ênfase na importância da educação na primeira infância e seja positivo o crescente investimento na área, que tem permitido aumentar a frequência das crianças nos programas da pré-escola, os recentes defensores da pré-escola nem sempre se baseiam na teoria e prática da educação da primeira infância e, portanto, têm visto a “aprendizagem” como uma atividade dirigida pelos professores, altamente estruturada e difícil, que precisa ser imposta às crianças pequenas. Essa visão é especialmente problemática nas discussões sobre como os jogos e brincadeiras podem promover o desenvolvimento cognitivo, porque brincar, usualmente, envolve tipos de aprendizagem iniciados por crianças que não são facilmente quantificáveis e, portanto, frequentemente, os adultos não têm certeza sobre como proporcionar tais oportunidades e avaliar a aprendizagem ocorrida durante experiências ricas e prolongadas dos jogos e brincadeiras.

Contexto da pesquisa

As formas de estudar o relacionamento entre os jogos e brincadeiras e o desenvolvimento cognitivo têm variado, incluindo estudos observacionais, estudos experimentais e tipos autorrelatados de coleta de dados. Entretanto, a maioria dos estudos sobre brincadeiras e jogos, incluindo aqueles relacionados com experiências de brincadeiras/cognição, tem recebido pouquíssimo investimento e, portanto, a maior parte é composta por estudos de pequena escala, de curto prazo e, usualmente, não replicados. Logo, as pesquisas sobre a aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras não têm sido especialmente sólidas, sendo que muitas apresentaram resultados mistos, dependendo de diversas variáveis nos estudos e nos problemas encontrados pelos pesquisadores.13

Principais perguntas da pesquisa

Devido à necessidade de justificar o tempo das brincadeiras das crianças nos programas da pré-escola, os pesquisadores têm tentado estudar os efeitos potenciais das brincadeiras de faz-de-conta, dos jogos e das brincadeiras construtivas em tipos específicos de aprendizagem, como o desenvolvimento da linguagem, da leitura e da matemática, assim como de outras habilidades cognitivas, como o funcionamento executivo, a criatividade, o desenvolvimento social/moral e a teoria da  mente (isso é, a capacidade de entender nossos próprios estados mentais e perceber que as outras pessoas também têm tais estados mentais, que podem ser semelhantes ou diferentes do nosso). Diversos pesquisadores têm investigado os aspectos dessas questões e relatado vários tipos de crescimento cognitivo relacionados com as formas lúdicas de aprendizagem.14 

Resultados de pesquisas recentes

Em relação às habilidades do tipo acadêmico, têm sido descritos bons exemplos do papel dos jogos e brincadeiras na aprendizagem da alfabetização.15 Esses estudos encontraram muitos resultados positivos do envolvimento lúdico das crianças com materiais de alfabetização. Kami16 demonstrou que diversos tipos de conhecimentos matemáticos, como aritmética, classificação e compreensão da relação espacial/temporal podem ser promovidos por meio da interação lúdica da criança com materiais e jogos que promovam tais conhecimentos. Também Griffin, Case e Siegler17 vincularam a atividade matemática lúdica ao aumento do desenvolvimento das “estruturas conceituais centrais” do raciocínio. Outros pesquisadores relataram o aprimoramento da teoria da mente por meio de jogos e brincadeiras18,19 e descobriram uma relação entre as habilidades de representar o faz-de-conta e as habilidades da teoria da mente, embora não esteja claro se as crianças pequenas veem o faz-de-conta como ação mental envolvente.20 Wyver e Spence,21 que estudaram a resolução de problemas por meio de brincadeiras, observaram que havia uma relação recíproca, em vez de unidirecional, entre a brincadeira cooperativa e a resolução de problemas. Em uma análise recente de estudos sobre o faz-de-conta, Lillard e colegas22 relataram que as evidências indicaram alguns efeitos dos jogos e brincadeiras nas habilidades da linguagem, mas resultados inconsistentes em relação às habilidades de raciocínio, criatividade e diversas habilidades acadêmicas. Embora esses estudos tenham todos sido classificados como “jogos e brincadeiras", muito do que foi feito eram atividades controladas por adultos, e não brincadeiras e jogos controlados por crianças. Além disso, a maioria dos estudos sobre jogos e brincadeiras é de curto prazo e, portanto, os resultados relacionados com os ganhos cognitivos de longo prazo, frequentemente, são indistintos ou ausentes. 

Pesquisas longitudinais indicaram algumas relações. Por exemplo, Wolfgang e colegas23 relataram que pré-escolares envolvidos em jogos de blocos complexos demonstraram ganhos de longo prazo em cognição matemática, e Bergen e Mauer24 relataram que pré-escolares com altos níveis de brincadeiras com materiais de alfabetização eram mais propensos a ser leitores espontâneos dos sinais e a ter uma linguagem simulada maior em uma “atividade de construção de cidades” aos 5 anos. Em um estudo de autorrelato de lembranças de brincadeiras de infância de indivíduos em idade universitária, Davis e Bergen25 descobriram que altos níveis de brincadeiras de faz-de-conta e de jogos na primeira infância estavam significativamente relacionados com maiores níveis de raciocínio moral adulto. Curiosamente, Root-Bernstein e Root-Bernstein26 observaram que os beneficiários das “bolsas para gênios” McArthur, frequentemente, relataram um alto nível de brincadeiras de faz-de-conta de “minimundos” durante a infância.

Lacunas da pesquisa

Existem muitas lacunas nas pesquisas da aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras, devido a, no mínimo, quatro razões. Primeiro, tanto os educadores como os pesquisadores variam em suas definições de aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras, de modo que as experiências de brincadeiras podem diferir em matéria de duração, quantidade de direção/interferência adulta, materiais disponíveis e métodos de coleta de dados. Logo, o que um educador/pesquisador chama de aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras pode ser extremamente diferente da definição de outro educador/pesquisador. Muitas vezes, o que o programa curricular chama de atividade por meio de jogos e brincadeiras tem uma forte direção do professor e o tempo disponível para brincadeiras autodirigidas pela criança não é muito extenso. Em segundo lugar, muitos estudos de aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras concentram-se somente na aprendizagem de habilidades acadêmicas, em vez de no papel da brincadeira na promoção de outros tipos de crescimento cognitivo. Em terceiro lugar, a maioria dos estudos é de curto prazo e deveria ser de natureza longitudinal (no mínimo durante um ano escolar) para medir a mudança cognitiva. Entretanto, nos estudos longitudinais há também fatores de crescimento geral que podem afetar o crescimento cognitivo. Em quarto lugar, como os programas pré-escolares atendem crianças com diversas experiências de brincadeiras e jogos em casa, diferentes temas de brincadeiras, habilidades variadas e uma diversidade de contextos econômicos, essas diferenças também podem afetar os resultados dos estudos do crescimento cognitivo por meio de jogos e brincadeiras. Todavia, como as bases teóricas e experienciais que sugerem a importância da aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras são muito sólidas, deveria ser prioridade ter uma disponibilidade maior de investimentos e atenção para a pesquisa dessa questão.

Conclusão

O interesse e o suporte à aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras na pré-escola têm variado nos últimos 75-100 anos, e é promissor haver atualmente suporte e interesse em encorajar as brincadeiras e jogos das crianças. As brincadeiras e jogos das crianças pequenas são valiosos para reforçar diversas áreas evolutivas, não somente aquelas relacionadas com habilidades acadêmicas específicas e, portanto, o estudo da aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras deveria incluir um foco amplo baseado em teorias e cientificamente rigoroso. Deveria incluir também o estudo de brincadeiras e jogos autodirigidos por crianças, assim como experiências de brincadeiras e jogos dirigidos por adultos, com a necessidade de estudos longitudinais.

Implicações para os pais, serviços e políticas

As decisões de todos os grupos relevantes relacionados com os serviços e políticas deveriam ser tomadas baseando-se em uma profunda compreensão dos jogos e brincadeiras e seu papel crucial nas vidas das crianças pequenas. Os pais deveriam ser especialmente vigilantes com o monitoramento da quantidade de tempo que seus filhos pequenos passam brincando com dispositivos tecnológicos e garantir que as brincadeiras de seus filhos incluam não apenas materiais de jogos e brincadeiras tradicionais, mas também tempo ao ar livre. Já que a aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras é um aspecto importante das salas de aula da pré-escola, ela deveria ser valorizada não somente considerando a aprendizagem de habilidades acadêmicas, mas também para dar suporte à aprendizagem da autorregulação, do controle emocional, do funcionamento executivo, da compreensão social, da criatividade e de outras habilidades cognitivas das crianças, assim como ser valorizada simplesmente pela alegria que as brincadeiras proporcionam às crianças.

Referências

  1. Durant W. The story of philosophy. New York, NY: Pocket Books; 1954.
  2. Froebel F. The education of man. New York, NY: Appleton-Century; 1887.
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Para citar este artigo:

Bergen D. Desenvolvimento cognitivo na aprendizagem por meio de jogos e brincadeiras. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Pyle A, ed tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/aprendizagem-por-meio-de-jogos-e-brincadeiras/segundo-especialistas/desenvolvimento-cognitivo-na. Publicado: Fevereiro 2018 (Inglês). Consultado em 28 de março de 2024.

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