Segurança e desorganização do apego em famílias que maltratam e em orfanatos


Centre for Child and Family Studies, Leiden University, Holanda
(Inglês). Tradução: julho 2011

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Introdução

Comportamentos de cuidado extremamente insensíveis e que envolvem maus-tratos podem estar entre os precursores mais importantes do desenvolvimento de insegurança e desorganização do apego. Egeland e Sroufe1 apontaram o impacto dramaticamente negativo do comportamento materno negligente ou abusivo para o desenvolvimento do apego e da personalidade, sobre o qual acumularam, nas fases finais do estudo Minnesota,2 evidências prospectivas sem paralelo na literatura. O que sabemos sobre a associação entre maus-tratos e apego, quais os mecanismos que associam maus-tratos a apego inseguro e desorganizado, e que tipos de intervenções baseadas em apego poderiam ser mais eficazes?

Do que se trata

Acompanhando Cicchetti e Valentino,3 nossa definição de maus-tratos inclui abuso sexual, abuso físico, negligência e maus-tratos emocionais. Além desses tipos de maus-tratos no contexto da família, chamamos a atenção também para a negligência estrutural que afeta milhões de órfãos e crianças abandonadas em todo o mundo. A negligência estrutural indica as características inerentes a cuidados em instituições, que impossibilitam um cuidado contínuo, estável e sensível para crianças individuais: rodízio de cuidadores, altas taxas de rotatividade de funcionários, grupos grandes, regimes severos e, às vezes, caos físico e social.4

Tem-se sugerido que a desorganização do apego é causada por cuidadores ameaçadores e extremamente insensíveis ou negligentes.5 Estudos com amostras que não sofreram maus-tratos demonstraram que comportamento parental anômalo, envolvendo (muitas vezes, apenas em episódios breves) comportamento parental dissociativo, manipulação rude, ou comportamento retraído, está relacionado com o desenvolvimento de apego desorganizado (ver uma revisão meta-analítica em Madigan, Baker-Kranenburg et al.). Maus-tratos praticados pelos pais são provavelmente um dos comportamentos mais assustadores a que uma criança pode estar exposta. Mães abusivas dirigem a seus filhos comportamento aversivo, intrusivo e controlador, em contraste com mães negligentes, que podem exibir cuidados inconsistentes. Pais insensíveis e que maltratam não regulam ou acalmam as experiências de aflição de seus filhos, mas ativam, a um só tempo, os sistemas de medo e de apego das crianças. A experiência resultante de medo sem solução é característica de crianças maltratadas. Segundo Hesse e Main,5 crianças desorganizadas são aprisionadas em um paradoxo insolúvel: sua figura de apego é uma fonte potencial de consolo e, ao mesmo tempo, uma fonte de medo imprevisível.

Problemas

Especulamos que existam multiplas trajetórias para a desorganização do apego, envolvendo seja maus-tratos da criança por pais abusivos, seja negligência em famílias em situação de múltiplos riscos ou em instituições.

A trajetória de abuso baseia-se na ideia de pais que maltratam (físicamente ou sexualmente), criando um medo insolúvel para a criança, que não consegue lidar com o paradoxo de uma figura de apego potencialmente protetora e, ao mesmo tempo, abusiva, e por isso se desorganiza.

Uma segunda trajetória está associada ao ambiente caótico de famílias em situação de múltiplos riscos ou aos cuidados em instituições, que levam a negligenciar as necessidades de apego das crianças. Cuidadores que evitam interagir com as crianças devido a problemas urgentes ou dificuldades em outras áreas de funcionamento (garantir renda, problemas de moradia, crianças demais para cuidar) criam um sistema de apego cronicamente hiperativado em uma criança que não tem a quem se voltar para obter consolo em momentos de estresse. Eventualmente, isso pode levar à ruptura das estratégias organizadas de apego ou prejudicar a capacidade da criança de desenvolver até mesmo uma estratégia de apego inseguro. 

Em terceiro lugar, a discórdia conjugal e a violência doméstica podem conduzir a níveis elevados de desorganização, na medida em que a criança testemunha que sua figura de apego é incapaz de proteger a si própria em suas brigas com seu parceiro. Zeanah et al.7 documentaram uma relação proporcional entre a exposição da mãe à violência praticada pelo parceiro e a desorganização da criança. Presenciar a violência entre os pais pode provocar medo na criança pequena em relação ao bem-estar da mãe e à capacidade desta de proteger a si mesma e de protegê-la contra a violência.  

Contexto de pesquisa

É difícil coletar dados com amostras que sofrem maus-tratos. Frequentemente, crianças maltratadas são vítimas de múltiplas formas de abuso, o que dificulta a comparação dos diversos tipos de maus-tratos. O trabalho conjunto com o sistema de previdência social da criança pode levantar questões legais e éticas, que envolvem compartilhar informações com o pessoal do atendimento clínico ou ser solicitado a depor em juízo. 

Um trabalho notável e rigoroso, embora ainda escasso, tem sido desenvolvido por grupos pioneiros de pesquisa nessa área desafiadora. Foram relatados sete estudos sobre segurança/desorganização do apego e maus-tratos a crianças nas famílias, e seis estudos sobre apego em crianças criadas em instituições, utilizando o procedimento (modificado) da Situação Estranha para avaliar o apego.8 Para examinar o impacto do abuso infantil sobre o apego, comparamos nesses estudos a distribuição combinada de padrões de apego com a distribuição normativa de apego de baixo risco (N = 2104, derivada da meta-análise de van IJzendoorn, Schuengel e Bakermans-Kranenburg8): inseguro-evitativo (A): 15%; seguro (B): 62%; inseguro-ambivalente (C): 9%; e desorganizado (D): 15%.

Principais questões de pesquisa

Há três pontos centrais: primeiro, maus-tratos à criança levam a apegos mais inseguros-organizados (evitativo e ambivalente)? Segundo, maus-tratos têm relação com desorganização do apego? Terceiro, quais são as intervenções eficazes (preventivas) para maus-tratos à criança?

Resultados recentes de pesquisa

Os estudos com crianças maltratadas na família revelam muito poucas crianças que demonstram apego seguro (14%), uma maioria de crianças desorganizadas (51%) e algumas inseguras-evitativas (23%) e inseguras-ambivalentes (12%). Essa distribuição difere significativamente da distribuição normativa, particularmente em termos de desorganização10,11,1,12,13,14 (ver uma meta-análise em Cyr, Euser, Bakermans-Kranenburg e van IJzendoorn15). 

Seis estudos recentes abordaram os efeitos dos cuidados em instituições sobre o apego16,17,18,19,20 (N.A. Dobrova-Krol, M.J. Bakermans-Kranenburg, M.H. IJzendoorn, F. Juffer, dados não publicados, 2009). Em conjunto, a distribuição das crianças criadas em instituições desvia-se acentuadamente da distribuição normativa, com 17% de apegos seguros, 5% esquivos, 5% ambivalentes e 73% desorganizados, em relação ao cuidador principal.

A porcentagem de apegos seguros é semelhante em crianças maltratadas e em crianças criadas em instituições, mas a porcentagem de apegos desorganizados é consideravelmente maior nas crianças institucionalizadas (Figura 1). 

Distribuições de apego (proporções) em amostras de crianças maltratadas, de instituições e de famílias típicas

Figura 1. Distribuições de apego (proporções) em amostras de crianças maltratadas, de instituições e de famílias típicas

Lacunas na pesquisa

De que maneira algumas crianças criadas em instituições e maltratadas desenvolvem apegos seguros, e o que caracteriza essas crianças? A segurança do apego constitui um fator de proteção em contextos de alto risco? A segurança interage com outros fatores de proteção, tais como a constituição biológica da criança ou os recursos psicossociais dos cuidadores? Pouco se sabe a respeito dos efeitos diferenciais dos vários tipos de abuso e negligência – a comorbidade pode dificultar uma distinção clara entre efeitos diferenciais. Por fim, os efeitos de maus-tratos à criança no longo prazo devem ser estudados mais detalhadamente. 

Implicações para pais, serviços e políticas

Diversos estudos, controlados e randomizados, começam a fornecer dados sobre a eficácia de intervenções baseadas em apego com populações de alto risco (ver revisões em Bakermans-Kranenburg, van IJzendoorn e Juffer21, Juffer, Bakermans-Kranenburg, van IJzendoorn4 e Berlin, Ziv, Aamaya-Jackson e Greenberg22). No entanto, muito poucos desses estudos de intervenção foram realizados com crianças maltratadas e seus pais, ou com crianças em instituições.

A falta de intervenções baseadas em evidências para casos de maus-tratos pode ter levado alguns profissionais a recorrer às chamadas terapias de contenção,a em que as crianças são forçadas a entrar em contato físico com seu cuidador ainda que resistam fortemente a essas tentativas. Esse tipo de terapia não se mostrou eficaz,23,24 e em alguns casos foi prejudicial para as crianças, chegando a provocar graves danos ou mortes.25 A terapia de contenção não tem nenhuma relação com a teoria do apego. Na verdade, os terapeutas forçam os cuidadores a ser extremamente insensíveis e a ignorar sinais claros emitidos pela criança. 

Um importante estudo, controlado e randomizado, realizado por Cicchetti, Rogosch e Toth,26 demonstrou a eficácia de uma intervenção baseada em apego para famílias que maltratam, utilizando psicoterapia com pais e filhos e promovendo a sensibilidade materna por meio de reinterpretação de experiências  de  apego passadas.  A intervenção resultou em uma redução substancial do apego desorganizado e em aumento de segurança do apego. 

Os dados sobre prevalência de maus-tratos evidenciam um grande impacto de fatores de risco associados a nível educacional muito baixo e desemprego dos pais (por exemplo, Euser et al.27). Uma implicação prática desta observação é a recomendação de adotar políticas socioeconômicas com forte ênfase em educação e emprego. Uma vez que pais desempregados e que abandonaram a escola são aqueles que praticam maus-tratos contra seus filhos com maior frequência, pode-se esperar que políticas que promovam a educação e aumentem as taxas de emprego reduzam efetivamente as taxas de maus-tratos de crianças. 

Referências

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aNT : No original, holding therapies. A palavra holding (segurar) refere-se ao fato de que a criança é imobilizada para forçar o contato com o cuidador. A tradução adotada pela literatura da área dilui até certo ponto esse sentido, uma vez que contenção pode ser entendida como referente ao plano emocional, de atitudes etc. 

Para citar este artigo:

van IJzendoorn MH, Bakermans-Kranenburg MJ. Segurança e desorganização do apego em famílias que maltratam e em orfanatos. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. van IJzendoorn MH, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/apego/segundo-especialistas/seguranca-e-desorganizacao-do-apego-em-familias-que-maltratam-e-em. Publicado: Novembro 2009 (Inglês). Consultado em 19 de abril de 2024.

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