Autismo e seu impacto no desenvolvimento infantil


Instituto de Saúde Infantil, Reino Unido
, Ed. rev. (Inglês). Tradução: janeiro 2011

Versão em PDF

Introdução

O autismo e os outros transtornos globais do desenvolvimento relacionados a ele são mais comuns do que se pensava, afetando até um em cada 100 indivíduos.1 Embora os sintomas e os prejuízos funcionais que os acompanham possam melhorar com o desenvolvimento e como resultado de intervenções específicas, a condição é vitalícia e resulta em morbidade e em custos consideráveis para o indivíduo, sua família e a sociedade. 

Do que se trata

A expressão “transtornos do espectro autístico” é atualmente utilizada para descrever um grupo de patologias do desenvolvimento neuro-psicológico que diferem em termos da etiologia subjacente e das formas de manifestação.2 O que elas têm em comum com a descrição de Kanner de crianças classicamente “autistas” é um prejuízo básico na capacidade de relacionamento e reciprocidade sociais.3  Esse prejuízo, que já foi considerado uma característica particular de alguns raros indivíduos em uma população, agora é normalmente entendido como um largo espectro de diferenças individuais que se distribuem amplamente na população em geral.4 

Problemas

O prejuízo básico na reciprocidade social, relações com pares e envolvimento emocional é acompanhado, em diferentes indivíduos, por graus variáveis de prejuízos na linguagem e na comunicação, retardo mental e padrões de comportamento limitados, não funcionais, repetitivos ou estereotipados. São comuns anormalidades sensoriais, entre as quais hipo ou hipersensibilidade, e interesses atípicos em algumas sensações. A ausência de brincadeira de faz de conta indica uma dificuldade na geração das idéias relacionadas ao desenvolvimento da compreensão e do pensar sobre outras pessoas e situações. Todas essas características podem estar presentes com gravidade variável. 

Os sistemas de classificaçãoa internacionalmente usados, DSM-IV5 e CID-106,  também incluem categorias diagnósticas para indivíduos que apresentam algumas mas não todas as deficiências necessárias para atender ao critério de autismo: síndrome de Asperger, autismo atípico e distúrbio difuso de desenvolvimento (“não especificado”, no CID-10; “não especificado de outra forma”, no DSM-IV.) Este grupo se compõe daqueles que têm distúrbios mais graves em uma área do que em outras, distúrbios moderados em diversas áreas ou aparecimento tardio (depois dos três anos de idade) do quadro. 

Contexto de pesquisa

Embora tenha sido estabelecido que o autismo seja uma condição orgânica e que essa condição é, em grande parte, herdada, somente em uma minoria de casos é possível identificar uma causa genética ou neurológica.2  Por esse motivo, uma intensa atividade de pesquisa se concentra atualmente na identificação de bases genéticas e neuropatológicas. No entanto, como o fenótipo autístico pode ser produzido por uma série de caminhos patogênicos que se sobrepõem em algum ponto do desenvolvimento e do funcionamento cerebrais, os marcadores biológicos ou genéticos ainda não identificados não estarão necessariamente presentes em todos os casos, e a definição de cada caso continuará a depender apenas do quadro comportamental. As metas da pesquisa comportamental incluem o estabelecimento dos processos neuropsicológicos comprometidos, a identificação e estabelecimento precoces de diagnósticos confiáveis nos primeiros anos de vida, e a avaliação da eficácia e da efetividade de diversos programas e abordagens de intervenção. 

Principais questões e resultados recentes de pesquisa

Embora seja possível estabelecer a etiologia em alguns poucos casos (por exemplo, crianças com síndrome do x-frágil ou com esclerose tuberosa), há evidências de herança poligênica complexa. No entanto, as tentativas de identificação, por meio de estudos de associação, de genes responsáveis pela suscetibilidade, embora tenham produzido vários genes candidatos em diversos cromossomos, ainda não identificaram nenhum em particular.7 O risco de recorrência para irmãos nascidos posteriormente é de cerca de 5%-10%, mas deficiências menos graves na habilidade de comunicação social e na linguagem são encontradas em até 20% dos parentes. A suscetibilidade familiar ao “fenótipo mais amplo” do autismo tem implicações para o aconselhamento genético. O autismo é mais comum em meninos (4:1) do que em meninas, mas ainda não se encontrou uma explicação substancial para essa discrepância.8   De 15 a 30% das crianças autistas passam por um período de parada no desenvolvimento ou de regressão, geralmente no comportamento social e na linguagem, entre 12 e 20 meses de idade, embora as causas dessa regressão não sejam bem compreendidas.9

Há consenso de que o processamento social (de faces, emoções, habilidades de mentalização) esteja prejudicado e há evidências de que os sistemas cerebrais que atendem a essas funções cognitivas estejam estrutural e funcionalmente alterados. No entanto, a causa dessas deficiências no processo de desenvolvimento pode estar em problemas prévios no desenvolvimento de circuitos cerebrais subjacentes aos sistemas de orientação e de gratificação social.10, 11 

Podem-se notar progressos na identificação e no diagnóstico precoce dos casos, em parte por meio de esforços para o desenvolvimento de instrumentos prospectivos de rastreamento12 e do estudo prospectivo de amostras de “alto risco”, tais como irmãos mais jovens de crianças já diagnosticadas.13 Existem, no entanto, grandes desafios clínicos: estabelecimento da confiabilidade do diagnóstico precoce, modificação das abordagens no tratamento para crianças pequenas, utilização de instrumentos de avaliação para crianças mais jovens e capacidade de indicar prognósticos.14

Há alguma evidência sobre a efetividade do uso intensivo da análise comportamental aplicada na intervenção precoce, mas há também limitações quanto aos resultados e à generalização de comportamentos dependentes de pistas.15  Há evidências também sobre os benefícios de abordagens sociais baseadas na comunicação16 e de abordagens que fornecem estrutura e pistas visuais, que muitos autistas de idade pré-escolar têm dificuldade de produzir sozinhos.17 Os elementos importantes dos programas de intervenção para crianças autistas pré-escolares incluem um foco no desenvolvimento de habilidades pragmáticas e funcionais de comunicação (verbal ou não verbal), de envolvimento conjunto e atividades sociais compartilhadas, na promoção de envolvimento e regulação emocional, e em ajuda aos pais no manejo de crises de birra e de rotinas pouco ajustadas.15 Para as crianças com prognósticos mais desfavoráveis e mais resistentes ao tratamento (por exemplo, as que não apresentam nenhuma comunicação verbal na idade escolar, juntamente com isolamento social extremo e retardo mental), é necessário determinar se as abordagens de promoção da comunicação podem contribuir para a adaptação.

Dependendo dos recursos familiares e do acesso aos serviços, pode haver um impacto considerável sobre a família, especialmente em momento importantes de transição (diagnóstico, ingresso na escola, transferência entre escolas, e entrada na vida adulta). A pesquisa sobre a efetividade e o grau de aceitação dos serviços de apoio para as famílias e para os adultos autistas é escassa. Uma tendência emergente é a identificação de psicopatologias associadas (por exemplo, ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo – TOC) em adolescentes e adultos, notadas principalmente em indivíduos com QI médio, e que podem levar a mais comportamentos desafiadores. 

Conclusões

Nossa compreensão sobre o autismo, que já foi considerado um distúrbio infantil raro e quase  sempre  severo,  sofreu  uma  reviravolta  nos  últimos 20 anos. Não se trata de um distúrbio raro. Suas manifestações são muito variáveis e podem estar presentes em indivíduos com QI baixo ou alto. Juntamente com a evidência crescente sobre os benefícios da intervenção precoce, essas mudanças na conceituação e na aplicação do diagnóstico implicam que nossos conceitos sobre a evolução e progressos prováveis também estão sofrendo mudanças significativas. Ao lado de avanços na pesquisa genética e na área da neurociência, a reconceituação do autismo levou os cientistas a formularem questões fundamentais sobre o comportamento social e a comunicação que são relevantes para as crianças em geral, e não apenas para as crianças relativamente raras que apresentam deficiências tais nessas capacidades que justifiquem o diagnóstico de autismo. 

Implicações para políticas

Os custos do autismo para os indivíduos, as famílias e a sociedade são consideráveis. Em nível internacional, há uma mobilização no sentido de melhorar a identificação e o tratamento precoces de forma a minimizar o impacto e reduzir as sequelas secundárias negativas do diagnóstico tardio e de tratamentos ineficazes. Os profissionais de saúde da comunidade e as equipes de educação fundamental precisam receber treinamento para a identificação e o manejo do autismo. São necessárias pesquisas básicas sobre a etiologia e os prejuízos psicológicos subjacentes que caracterizam o autismo, além de mais pesquisas aplicadas sobre a identificação precoce, as intervenções efetivas e o apoio às famílias. No nível social mais amplo, o reconhecimento de que aspectos do autismo se relacionam de forma mais geral com diferenças individuais no comportamento social (por exemplo, entre meninos e meninas18) desafia a noção de autismo como uma forma diferenciada e necessariamente “prejudicada” de processar e compreender o mundo social. Isto pede uma maior aceitação social das diferenças no envolvimento social e comportamento social.

Referências

  1. Baird G, Simonoff E, Pickles A, Chandler S, Loucas T, Meldrum D, Charman T. Prevalence of disorders of the autism spectrum in a population cohort of children in South Thames: the Special Needs and Autism Project (SNAP). Lancet 2006; 368:210-215.
  2. Volkmar FR, Lord C, Bailey A, Schultz RT, Klin A. Autism and pervasive developmental disorders. Journal of Child Psychology and Psychiatry 2004;45(1):135-170.
  3. Kanner L. Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child 1943;2:217-250.
  4. Constantino JN, Todd RD. Autistic traits in the general population: A twin study. Archives of General Psychiatry 2003;60(5):524-530.
  5. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-IV). 4th ed. Text revision. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2000.
  6. World Health Organization. The ICD-10 classification of mental and behavioural disorders: Diagnostic criteria for research. Geneva, Switzerland: World Health Organization;1993. 
  7. Folstein SE, Rosen-Sheidley B. Genetics of autism: complex aetiology for a heterogeneous disorder. Nature Reviews Genetics 2001;2(12):943-955.
  8. Skuse DH. Imprinting, the X-chromosome, and the male brain: explaining sex differences in the liability to autism. Pediatric Research 2000;47(1):9-16. 
  9. Richler J, Luyster R, Risi S, Hsu WL, Dawson G, Bernier R, Dunn M, Hepburn S, Hyman S, McMahon W, Goudie-Nice J, Minshew N, Rogers S, Sigman M, Spence M, Golberg W, Tager-Flusberg H, Volkmar F, Lord C. Is there a ‘Regressive Phenotype’ of autism spectrum disorder associated with the measles-mumps-rubella vaccine? A CPEA Study. Journal of Autism and Developmental Disorders 2006;36(3):299-316.
  10. Dawson G, Webb S, Schellenberg GD, Dager S, Friedman S, Aylward E, Richards T. Defining the broader phenotype of autism: Genetic, brain, and behavioural perspectives. Development and Psychopathology 2002;14(3):581-611.
  11. Mundy P. The neural basis of social impairments in autism: the role of the dorsal medial-frontal cortex and anterior cingulate system. Journal of Child Psychology and Psychiatry 2003;44(6):793-809.
  12. Baird G, Charman T, Cox A, Baron-Cohen S, Swettenham J, Wheelwright S, Drew A. Current topic: Screening and surveillance for autism and pervasive developmental disorders. Archives of Disease in Childhood 2001;84(6):468-475.
  13. Zwaigenbaum L, Thurm A, Stone W, Baranek G, Bryson S, Iverson J, Kau A, Klin A, Lord C, Landa R, Rogers S, Sigman M. Studying the emergence of autism spectrum disorders in high-risk infants: methodological and practical issues. Journal of Autism and Developmental Disorders 2006;37(3):466-80.
  14. Charman T, Baird G. Practitioner review: Diagnosis of autism spectrum disorder in 2-and 3-year-old children. Journal of Child Psychology and Psychiatry 2002;43(3):289-305.
  15. Committee on Educational Interventions for Children with Autism, Lord C, McGee JP, eds. Educating Children with Autism. Washington, DC: National Academy Press; 2001.
  16. Aldred C, Green J, Adams C. A new social communication intervention for children with autism: pilot randomised controlled treatment study suggesting effectiveness. Journal of Child Psychology and Psychiatry 2004;45(8):1420-1430. 
  17. Howlin, P., Gordon K., Pasco G., Wade A. Charman T. The effectiveness of Picture Exchange Communication System (PECS) training for teachers of children with autism: a pragmatic, group randomized controlled trial. Journal of Child Psychology and Psychiatry 2007;48(5),473-481.
  18. Baron-Cohen S, Knickmeyer RC, Belmonte MK. Sex differences in the brain: implications for explaining autism. Science 2005;310(5749):819-823.

aDSM-IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders-Fourth Edition – Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais – 4a Edição. CID-10 - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde – 10a edição (ICD - International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems).

Para citar este artigo:

Charman T. Autismo e seu impacto no desenvolvimento infantil. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Elsabbagh M, Clarke ME, eds. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/autismo/segundo-especialistas/autismo-e-seu-impacto-no-desenvolvimento-infantil. Atualizada: Junho 2007 (Inglês). Consultado em 28 de março de 2024.

Texto copiado para a área de transferência ✓