Maus-tratos na infância e seu impacto sobre a epidemiologia do desenvolvimento psicossocial
Nico Trocmé, PhD
Centre of Excellence for Child Welfare, Canadá
(Inglês). Tradução: julho 2011
Introdução
Maus-tratos na infância constituem uma ameaça significativa para o desenvolvimento saudável da criança. A compreensão do escopo e da gravidade dos maus-tratos é uma condição crítica para o desenvolvimento de intervenções clínicas e de políticas sociais para a proteção de crianças em risco e para tratar aquelas que já foram vitimizadas. Este artigo descreve a incidência, a prevalência e a gravidade de maus-tratos na infância e discute a importância de estratégias interdisciplinares e baseadas na comunidade para a abordagem a esse importante problema social.
Definições
Maus-tratos na infância é a expressão ampla utilizada para descrever atos de abuso e de negligência perpetrados contra crianças por adultos ou por jovens mais velhos. Esses atos situam-se em quatro categorias amplas: abuso físico, abuso sexual, negligência e maus-tratos emocionais. O abuso físico varia desde agressões graves, que podem matar ou comprometer permanentemente a criança, até punições físicas e sacudimento de bebês. O abuso sexual inclui intercurso sexual, carícias, atos de exposição, assédio e solicitações sexuais. Negligência refere-se à incapacidade do cuidador de supervisionar ou proteger a criança, ou de atender suas necessidades físicas. É difícil estabelecer a diferença entre esta última categoria – negligência física – e pobreza familiar, uma vez que a maioria dessas famílias vive em condições de pobreza, embora muito poucas delas sejam consideradas negligentes. Maus-tratos emocionais incluem abuso verbal extremo ou habitual – ameaças, depreciação, etc. – e ausência sistemática de atitudes que promovam o desenvolvimento e da atenção necessárias para o crescimento saudável da criança. A exposição da criança à violência familiar vem sendo cada vez mais reconhecida como uma forma potencial de maus-tratos emocionais.
Incidência anual
No Canadá, as estatísticas sobre incidência de maus-tratos na infância são monitoradas por meio do Canadian Incidence Study of Reported Child Abuse and Neglect – CIS (Estudo Anual sobre Incidência de Abuso e Negligência Relatados no Canadá), um levantamento periódico de casos investigados por autoridades provinciais e territoriais de proteção à criança. O primeiro ciclo de amplitude nacional do CIS estimou que 135.600 investigações sobre maus-tratos na infância foram realizadas no Canadá em 1998, e que os maus-tratos foram confirmados1 para 61.200 dessas crianças – uma razão de 9,7 vítimas por mil crianças.1 Um terço dessas crianças – 20.500 – tinham menos de 6 anos de idade. A incidência de vitimização varia com idade e sexo: na faixa entre 2 e 3 anos de idade, as vítimas mais freqüentes eram meninos, ao passo que aos 5 anos as meninas eram mais vitimizadas do que os meninos (ver figura abaixo).
Cerca de 75% das crianças menores de 6 anos de idade eram vítimas de negligência (44%) ou de maus-tratos emocionais (29%). A vitimização por abuso diferia significativamente por sexo, sendo o abuso físico mais comum (20%) do que o abuso sexual (8%) para meninos, ao passo que o abuso sexual era mais comum (15%) para meninas do que o abuso físico (12%).
É difícil fazer comparações diretas entre as taxas de incidência no Canadá e em outros países, devido às diferenças nos procedimentos de registro e de investigação. A taxa de vitimização relatada nos Estados Unidos em 1998 foi de 12,9 por mil crianças, enquanto no mesmo ano, nos três maiores estados da Austrália, a taxa de vitimização variou de 5,1 a 5,9 por mil.2
Prevalência na infância
Geralmente, os estudos de prevalência têm medido taxas de vitimização durante a infância, em contraste com as estatísticas de incidência, que medem taxas de vitimização em um ano específico. No Canadá, os dados disponíveis mais completos sobre prevalência de maus-tratos na infância são de uma pesquisa de 1990 sobre saúde da população, com pessoas com mais de 15 anos de idade residentes em Ontário.3 Entre os homens, 31% relataram ter sofrido abusos físicos na infância, em comparação com 21,1% das mulheres; e 12,8% das mulheres e 4,3% dos homens relataram uma história de abuso sexual. O estudo não identificou em que momento da infância os abusos tinham ocorrido. As taxas de vitimização sexual relatadas no Ontário Health Supplement (Suplemento de Saúde de Ontário) são um pouco mais baixas do que aquelas relatadas em outros países, que se situam aproximadamente em 20% para mulheres e em 3% a 11% para homens.
Danos e morte
A maioria dos casos de maus-tratos relatados aos serviços de bem-estar da infância envolve situações em que as crianças já sofreram algum tipo de dano emocional, ou correm risco significativo de serem machucadas ou sofrerem algum tipo de dano emocional. No entanto, são relativamente raros os danos físicos devido a maus-tratos. O CIS de 1998 verificou que danos físicos foram observados em 15% dos 20.500 casos de maus-tratos comprovados, que envolviam desde recém-nascidos até crianças de 5 anos de idade.2 Em muitos casos, foram constatados edemas e arranhões que não exigiram cuidados médicos. Danos graves que exigiram atenção médica foram observados em 5% dos casos que envolviam crianças entre 1 e 5 anos de idade, e em 17% dos casos que envolviam bebês com menos de 1 ano de idade. A síndrome do bebê sacudido – uma forma de abuso difícil de detectar, que envolve hematomas subdurais – foi identificada em cerca de 300 dos 20.500 casos de maus-tratos comprovados envolvendo desde recém-nascidos até crianças de 5 anos de idade. Abusos graves que resultam em injúrias são particularmente preocupantes em situações que envolvem crianças pequenas, devido ao alto risco de morte ou de danos permanentes nos três primeiros anos de vida. Crianças menores de 5 anos correm o maior risco de serem mortas por um dos pais: na faixa etária entre o nascimento e os 17 anos de idade, dois terços das crianças que são mortas por um membro da família têm no máximo 5 anos de idade, e 29% têm menos de 1 ano.5 No caso de crianças menores de 3 anos de idade, a causa de morte mais freqüente é sacudimento (35%) ou estrangulamento (29%), ao passo que outras crianças e jovens estão mais expostos a serem mortos por arma de fogo. As taxas de homicídio de crianças no Canadá não mudaram significativamente nos últimos 20 anos.
Tendências
Maus-tratos na infância vêm se tornando um problema de saúde cada vez mais preocupante. Em decorrência do aumento da conscientização pública, os relatos de suspeitas de abuso e negligência na infância estão aumentando em todo o Canadá. Embora ainda não estejam disponíveis no país dados sobre tendências nacionais, os registros das províncias e dos territórios documentam um aumento nas investigações.6 Em Ontário, província que dispõe das estatísticas mais detalhadas sobre tendências, o número de relatos comprovados de maus-tratos quase duplicou em cinco anos: de 12.300 casos, em 1993, para 24.400 casos, em 1998.7 Esse aumento foi devido principalmente a casos de violência doméstica, que representaram menos de 2% dos casos em 1993, mas quase 25% dos casos de maus-tratos comprovados em 1998. Em contraste, os relatos sobre abuso sexual de crianças diminuíram em 48% entre 1993 e 1998. O aumento dos casos de exposição à violência doméstica foi devido basicamente a uma mudança drástica na reação da polícia, dos profissionais de saúde e das escolas, que relatam quase 90% dos casos de violência doméstica. A redução nos relatos de abuso sexual é mais difícil de interpretar. Alguns argumentam que a queda reflete uma redução efetiva nas taxas de vitimização sexual, que pode ser atribuída a amplos esforços de prevenção, detecção e abertura de processos judiciais. Outros se preocupam com a possibilidade de que as crianças e os pais que não são os responsáveis pelo abuso estejam cada vez mais hesitantes quanto a denunciar a vitimização.
Implicações para políticas e práticas
Maus-tratos na infância constituem um problema grave, que afeta mais de 60 mil crianças por ano no Canadá. Crianças vítimas de abuso e negligência correm riscos muito altos de desenvolverem problemas sociais, emocionais e cognitivos duradouros. No entanto, a resposta à situação dessas crianças tem sido fragmentada. Ao lado da introdução universal de leis que exigem a denúncia desses fatos, poucos programas de prevenção e de tratamento têm sido desenvolvidos sistematicamente para atender às necessidades dessas crianças. O exame das taxas de vitimização revela uma população diversificada, que varia desde casos de abuso físico grave, que exigem respostas urgentes, até casos complexos de negligência e de exposição à violência doméstica, nos quais pode ser necessário reconceituar o papel das autoridades de proteção à criança. Sob a pressão contínua de um número crescente de casos, os provedores de serviços de bem-estar para a infância vêm buscando modelos mais eficazes para a colaboração com outros provedores de serviços.6
- Trocmé N, MacLaurin B, Fallon B, Daciuk J, Billingsley D, Tourigny M, Mayer M, Wright J, Barter K, Burford G, Hornick J, Sullivan R, McKenzie B. Canadian incidence study of reported child abuse and neglect: Final report. Ottawa, Ontario: Minister of Public Works and Government Services Canada; 2001.
- Trocmé NM, Tourigny M, MacLaurin B, Fallon B. Major findings from the Canadian incidence study of reported child abuse and neglect. Child Abuse & Neglect 2003;27(12):1427-1439.
- MacMillan HL, Fleming JE, Trocmé N, Boyle MH, Wong M, Racine YA, Beardslee WR, Offord DR. Prevalence of child physical and sexual abuse in the community: Results from the Ontario health supplement. JAMA - Journal of the American Medical Association 1997;278(2):131-135.
- Finkelhor D. Current information on the scope and nature of child sexual abuse. Future of Children 1994;4(2):31-53.
- Canadian Centre for Justice Statistics. Family violence in Canada: A statistical profile 2003. Ottawa, Ontario: Statistics Canada; 2003. No. Cat. 85-224-XIE. Available at: http://www.statcan.ca/english/freepub/85-224-XIE/85-224-XIE03000.pdf. Accessed November 29, 2004.
- Trocmé N, Chamberland C. Re-involving the community: The need for a differential response to rising child welfare caseloads in Canada. In: Trocmé N, Knoke D, Roy C, eds. Community collaboration and differential response: Canadian and international research and emerging models of practice. Ottawa, Ontario: Centre of Excellence for Child Welfare; 2003:45-56.
- Trocmé N, Fallon B, MacLaurin B, Copp B. The changing face of child welfare investigations in Ontario: Ontario Incidence Studies of Reported Child Abuse and Neglect (OIS 1993/1998). Toronto, Ontario: Centre of Excellence for Child Welfare, Faculty of Social Work, University of Toronto; 2002.
Para citar este artigo:
Trocmé N. Maus-tratos na infância e seu impacto sobre a epidemiologia do desenvolvimento psicossocial. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. MacMillan HL, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/maus-tratos-na-infancia/segundo-especialistas/maus-tratos-na-infancia-e-seu-impacto-sobre. Publicado: Fevereiro 2005 (Inglês). Consultado em 13 de dezembro de 2024.
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