Crianças pequenas e comportamentos alimentares. Comentários sobre Piazza e Carroll-Hernandez, Ramsay e Black


Cincinnati Children’s Hospital Medical Center and Dept of Pediatrics, University of Cincinnati College of Medicine, EUA
(Inglês). Tradução: outubro 2011

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Comentários sobre: 

  1. Habilidades de alimentação, apetite e comportamento alimentar de bebês e crianças pequenas e seu impacto sobre o crescimento e o desenvolvimento psicológico – Maria Ramsay, PhD
  2. Ajudando as crianças a desenvolver hábitos alimentares saudáveis – Maureen M. Black, PhD
  3. Avaliação e tratamento de distúrbios alimentares em pacientes pediátricos – Cathleen C. Piazza, PhD, e Tammy A. Carroll-Hernandez, PhD

Introdução

Distúrbios alimentares ocorrem comumente em meio à população infantil, afetando tipicamente tanto crianças que vêm desenvolvendo normalmente quanto aquelas que apresentam atraso do desenvolvimento e condições médicas. Os distúrbios alimentares estão associados a múltiplos fatores e podem manifestar-se a partir de uma grande diversidade de causas, entre as quais anormalidades físicas, distúrbios do desenvolvimento neural, problemas de regulação do apetite, doenças metabólicas, defeitos sensoriais ou comportamentos aprendidos. Abrangendo uma ampla diversidade, os problemas alimentares variam desde o comer seletivo, que pode não ter impacto iminente sobre a saúde física da criança, até a total recusa de alimentos, que pode colocar a criança em risco de comprometimento nutricional. Dadas as consequências potenciais para o crescimento, o desenvolvimento cognitivo e a saúde física da criança com problemas alimentares crônicos, a compreensão sobre as formas pelas quais se desenvolvem habilidades alimentares e interações problemáticas nas situações de refeição, assim como identificar estratégias eficazes para a intervenção são questões importantes para a promoção da saúde da criança no longo prazo. Ramsay, Black, Piazza e Carroll-Hernandez fazem revisões brilhantes sobre a pesquisa anterior e destacam seu próprio trabalho, que sublinha a importância da consideração de múltiplos fatores em interação para a compreensão, a avaliação e o tratamento de problemas alimentares em pacientes pediátricos.

Pesquisas e conclusões

Em sua revisão sobre alimentação e crescimento em crianças, Ramsay descreve a evolução das habilidades de alimentação a partir de uma perspectiva de desenvolvimento. A autora ilustra o curso inicial típico de desenvolvimento da alimentação em crianças pequenas, mobilizado, em sua origem, por pistas sinais internos de fome e habilidades motoras orais, mas modulado também pelo temperamento e pelo estilo de alimentação dos pais. Reconhecendo a complexidade da questão da aquisição de habilidades alimentares, Ramsay menciona diversas outras influências, entre as quais as expectativas sociais e as características maternas e familiares em relação ao peso da criança e ao tipo de alimento ingerido, que contribuem para o desenvolvimento de padrões alimentares negativos e crescimento deficiente da criança. Como destaca a cuidadosa revisão de Ramsay, fica claro que os problemas alimentares na infância vão além das características específicas da criança e refletem a influência de diversos fatores externos ou ambientais que afetam a criança pequena em múltiplos níveis simultaneamente. Portanto, um desafio é discernir os fatores específicos que contribuem para as dificuldades alimentares de uma criança pequena, uma vez que padrões alimentares problemáticos podem resultar de problemas fisiológicos ou funcionais da alimentação – por exemplo, falta de apetite ou sucção deficiente –, mas podem mais tarde ser condicionados por meio de aprendizagem associativa, sinais internos ou ambientais – por exemplo, as práticas e crenças dos pais relativas à alimentação. Como aponta Ramsay, todos esses fatores podem ter impacto prejudicial sobre os comportamentos alimentares, as interações nas situações de refeição e o crescimento da criança.

Ecoando os comentários de Ramsay, Black avança na ilustração do impacto da interação criança-cuidador sobre o desenvolvimento dos padrões alimentares e dos comportamentos da criança nas situações de refeição. As contribuições da criança para os problemas alimentares subsequentes podem incluir comunicação inconsistente ou disruptiva, sinais verbais e não verbais relativos à fome e saciedade. Os cuidadores, por sua vez, talvez tenham dificuldade para reconhecer ou interpretar sinais da criança, o que resulta em conflitos no momento das refeições. Black revê diversas estratégias por meio das quais os cuidadores podem promover o processo de alimentação, tais como a apresentação de modelos de comportamentos alimentares positivos, o estabelecimento de rotinas consistentes e previsíveis para as refeições, e a ênfase na importância do oferecimento de alimentos nutricionalmente equilibrados em um ambiente positivo. No entanto, Black salienta a importância de intervenções em muitos níveis para a promoção de padrões alimentares saudáveis, o que inclui mudanças ambientais no sentido de que os restaurantes ofereçam para as crianças opções nutritivas, mas também atraentes, e educação individual e familiar para aperfeiçoar o manejo das refeições pelos pais e aumentar sua percepção a respeito de comportamento alimentar saudável. Essas intervenções são igualmente importantes para crianças que estão com baixo peso ou com excesso de peso. 

Enquanto o artigo de Black oferece direções para intervenções em múltiplos níveis para a promoção do desenvolvimento de comportamentos alimentares saudáveis em todas as crianças, independentemente de seu peso, Piazza e Carroll-Hernandez focalizam sua revisão apenas nas pesquisas sobre crianças que estão abaixo do peso e/ou com falhas do crescimento.a Tal como nas revisões de Ramsay e Black, as autoras apontam a complexidade das causas de distúrbios alimentares em pacientes pediátricos, que podem incluir tanto fatores biológicos quanto fatores culturais que podem ser ainda exacerbados pelas estratégias de manejo do cuidador. As autoras oferecem sustentação empírica para tratamentos comportamentais de problemas alimentares por meio de dados baseados em resultados, demonstrando a eficácia de serviços de tratamento diário intensivo, interdisciplinar e de base primariamente comportamental. Em seu próprio trabalho, as autoras documentam o fato de que crianças com problemas alimentares persistentes – muitas das quais precisavam receber alimentação suplementar por meio de tubos nasogástricos ou gastrotômicos – conseguiram atingir e até mesmo superar 70% de seus objetivos de alimentação oral no programa de tratamento, e em 100% dos casos foi possível transferir o tratamento para o lar e a comunidade. Dados de acompanhamento até 24 meses depois da alta do programa revelaram que 85% das crianças continuavam a progredir na direção de uma alimentação típica para a idade. 

Implicações para desenvolvimento e políticas

Em conjunto, esses três artigos ilustram a complexidade do desenvolvimento da alimentação e os mecanismos pelos quais problemas alimentares se manifestam em crianças pequenas. É evidente que distúrbios alimentares em pacientes pediátricos não têm uma origem única: envolvem a interação de diversos componentes que resultam em padrões alimentares atípicos, os quais, em última instância, afetam a criança, a família e a sociedade como um todo. Dados sobre resultados são fundamentais para a compreensão das estratégias mais eficazes a serem utilizadas para a abordagem a problemas alimentares na infância, e as autoras oferecem dados convincentes em apoio à utilização de intervenções comportamentais intensivas para a promoção do desenvolvimento alimentar em crianças com problemas crônicos de alimentação e de crescimento.

Entretanto, é necessário um número muito maior de pesquisas no contexto da criança e da família. Sob o ponto de vista da criança, há poucos dados publicados sobre os resultados médicos, psicológicos e sociais no longo prazo em crianças com falhas de crescimento nos primeiros meses de vida e que  participaram  de   tratamento   alimentar intensivo. As condições que envolvem a saúde física, o peso, o crescimento e o status alimentar dessa população de crianças continuam obscuras, com exceção dos resultados obtidos em estudos de acompanhamento realizados apenas nos primeiros dois anos após a alta. Não está claro, por exemplo, se as crianças que receberam o tratamento alimentar continuam a parecer significativamente diferentes em peso e altura em comparação com seus pares saudáveis no decorrer de seu crescimento, ou se deixam de parecer muito diferentes e apresentam apenas estatura mais baixa ou compleição física mais esguia. Pesquisas anteriores revelam que a inibição do crescimento e do desenvolvimento pode ser uma característica permanente em bebês com baixo peso ao nascer.1 Persistem também questões relativas à saúde física: crianças com baixo peso são mais, menos ou igualmente saudáveis em comparação com crianças que estão entre 90% e 100% do peso corporal ideal? É importante, portanto, compreender em que ponto do desenvolvimento da criança é adequada uma preocupação maior ou menor com menor crescimento ou com o status do peso. Além disso, questões médicas, psicológicas ou de desenvolvimento ainda não detectadas podem vir a se revelar com a maturação de um padrão específico característico de problema alimentar, que poderia ter sido um primeiro indicador de um problema emergente diagnosticável. O esclarecimento dessas questões pode contribuir para determinar a escolha, a implementação e a intensidade do tratamento de uma criança pequena com problemas alimentares pelos provedores de serviços de saúde.

É necessária também a realização de mais pesquisas no contexto da família, especialmente quanto aos efeitos do tratamento alimentar sobre o funcionamento da família. Como ilustrado por Piazza e Carroll-Hernandez, as pesquisas que examinaram os tratamentos comportamentais de problemas alimentares demonstraram consistentemente sua eficácia na melhoria das habilidades da criança para a alimentação oral. No entanto, pouco se sabe sobre os efeitos sobre as relações familiares à medida que os cuidadores começam a transferir as estratégias comportamentais de alimentação para o contexto doméstico. Por exemplo, durante quanto tempo os cuidadores precisam fazer esforços significativos para lidar com as questões alimentares da criança – isto é, em que momento os cuidadores podem interromper ou reduzir o emprego de estratégias estritamente comportamentias durante as refeições, e permitir à criança a liberdade de comer independentemente, sem intervenções? De que forma essas intervenções alimentarem afetam a relação da criança com os irmãos/irmãs? 

Da mesma forma, qual é o impacto da utilização, pelo cuidador, de estratégias alimentares comportamentais com a criança-alvo sobre os padrões alimentares e as interações nas situações de refeição das outras crianças da família que nâo têm problemas alimentares ou de crescimento? 

No nível social mais amplo, políticas e programas públicos precisam apoiar esforços de promoção da alimentação saudável para crianças e famílias, por meio de prevenção primária, secundária e terciária de distúrbios alimentares na infância. Esforços de prevenção primária envolveriam prevenir o desenvolvimento de distúrbios alimentares nas crianças, particularmente naquelas reconhecidamente sob maior risco de desenvolvimento desses problemas, como bebês prematuros e com muito baixo peso ao nascer,2-3 ou de famílias que enfrentam estressores ambientais e emocionais.4,5  No mínimo, deve haver programas alimentares em parceria com os programas comunitários já existentes que se responsabilizam pela redução de fatores de risco na população em geral. No caso específico da alimentação e do crescimento, os programas alimentares precisam colaborar com programas comunitários que oferecem intervenções amplas e apoio à nutrição e à primeira infância. Dessa forma, todas as crianças e todos os cuidadores, especialmente nas situações de risco, podem ter acesso à educação e a programas que visam aumentar o conhecimento sobre escolhas alimentares saudáveis e comportamentos alimentares positivos e adequados à fase de desenvolvimento. E o que é muito importante: esses esforços de intervenção primária precisam ser testados empiricamente, para determinar se as crianças e as famílias de fato são beneficiadas por esses programas de apoio e educação em termos de redução da taxa de problemas alimentares na infância. 

Para as crianças que já estão apresentando problemas alimentares, os esforços de prevenção secundária e terciária precisam focalizar a prevenção (secundária) e o controle (terciária) de complicações negativas e dispendiosas – por exemplo, dependência de tubo nasogástrico ou gastrotômico – dos problemas alimentares. Dada a complexidade das causas de problemas alimentares na infância, as crianças e as famílias precisam ter acesso a uma equipe interdisciplinar de especialistas capacitados na área de avaliação e tratamento pediátrico da alimentação, de forma que sejam avaliados e tratados tanto os componentes fisiológicos quanto os componentes comportamentais e de desenvolvimento. A importância dos cuidados por uma equipe interdisciplinar tem sido fartamente descrita na literatura.6,7 Infelizmente, a avaliação e o tratamento interdisciplinar podem ser dispendiosos e não ser acessíveis a todas as crianças e famílias, dependendo de onde vivem e dos recursos disponíveis. Portanto, para aumentar a disponibilidade de serviços, os sistemas de atenção à saúde precisam apoiar a capacitação de provedores de atenção à saúde, para ajudá-los a aprender a identificar precocemente problemas alimentares, bem como para ajudá-los a compreender e ensinar estratégias básicas de manejo da alimentação e das refeições aos cuidadores de crianças com problemas de alimentação e de crescimento. Para crianças que requerem tratamento alimentar intensivo, será necessário explorar outros modelos. Embora seja eficaz, o tratamento alimentar comportamental é altamente individualizado, requer grande investimento de trabalho e uma equipe especializada com capacitação especial para desenvolver as intervenções.8 São necessárias mais pesquisas para determinar se o tratamento preferencial – isto é, intervenções comportamentais intensivas – pode ser adaptado para implementação em formato de grupo, por exemplo, ao invés do formato individualizado, de forma a reduzir os custos e aumentar a disponibilidade dos serviços de tratamento. 

Se pudermos ajudar os cuidadores e os provedores de atenção à saúde a compreender de que forma se desenvolvem os problemas alimentares na infância, e qual a abordagem mais eficaz aos problemas alimentares crônicos e agudos, mais crianças poderão ser capazes de evitar a progressão rumo a padrões alimentares desajustados.  

Referências

  1. Fledelius HC. Inhibited growth and development as permanent features of low birth weight. A longitudinal study of eye size, height, head circumference, inter-pupillary distance and exophthalmometry, as measured at age 10 and 18 years. Acta Paediatrica Scandinavica 1982;71(4):645-650.
  2. Douglas JE,  Byron, M.  Interview data on severe behavioural eating difficulties in young children.  Archives of Disease in Childhood 1996;75(4):304-308.
  3. Hawdon JM, Beauregard N, Slattery J, Kennedy G.  Identification of neonates at risk of developing feeding problems in infancy.  Developmental Medicine & Child Neurology 2000;42(4):235-239.
  4. Drotar D. Failure to thrive (growth deficiency).  In: Roberts MC, ed. Handbook of Pediatric Psychology. 2nd ed. New York, NY: Guilford Press; 1995:516-536. 
  5. Skuse D, Reilly S, Wolke D.  Psychosocial adversity and growth during infancy.  European Journal of Clinical Nutrition 1994;48(Suppl 1):S113-S130.
  6. Lefton-Greif MA, Arvedson JC.  Pediatric feeding/swallowing teams.  Seminars in Speech & Language 1997;18(1):5-11.
  7. Miller CK, Burklow KA, Santoro K, Kirby E, Mason D, Rudolph CD. An interdisciplinary team approach to the management of pediatric feeding and swallowing disorders. Children’s Health Care 2001;30(3):201-218.
  8. Kerwin ME. Empirically supported treatments in pediatric psychology: severe feeding problems. Journal of Pediatric Psychology 1999;24(3):193-214.  

a NT: Na literatura da área, a expressão “déficit de crescimento” tem sido traduzida por “falhas do crescimento” ou “falhas no crescimento”. Refere-se a peso baixo para a idade ou taxa baixa de aumento de peso para a idade.

Para citar este artigo:

Burklow K. Crianças pequenas e comportamentos alimentares. Comentários sobre Piazza e Carroll-Hernandez, Ramsay e Black . Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Faith MS, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/nutricao-infantil/segundo-especialistas/criancas-pequenas-e-comportamentos-alimentares-comentarios. Publicado: Outubro 2004 (Inglês). Consultado em 19 de abril de 2024.

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