Aquisição do segundo idioma e bilinguismo na primeira infância e seu impacto sobre o desenvolvimento cognitivo inicial


York University, Canadá
, 2a ed. rev. (Inglês). Tradução: setembro 2017

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Introdução

A possibilidade de que o bilinguismo precoce afete o desenvolvimento cognitivo e de linguagem das crianças tem sido há muito tempo uma preocupação de pais e de educadores. Na primeira metade do século 20, o ponto de vista predominante era de que o bilinguismo e a aquisição de um segundo idioma no início da vida confundiria a criança e interferiria com sua capacidade de desenvolver funções cognitivas normais,1 e de ser bem-sucedida em ambientes educacionais.2 Essas ideias passaram por uma reversão radical com um estudo de Peal e Lambert,3 que constituiu um marco na área e demonstrou a superioridade geral de bilíngues em comparação com monolíngues em uma grande variedade de testes de inteligência e de aspectos de desempenho escolar. As pesquisas recentes têm sido mais equilibradas, identificando áreas nas quais crianças bilíngues são superiores e outras áreas nas quais o bilinguismo não tem efeitos sobre o desenvolvimento.4 

Do que se trata

A questão do impacto potencial do bilinguismo sobre o desenvolvimento infantil sempre foi importante, mas manifestou-se cada vez mais como uma preocupação crítica nas sociedades modernas, e particularmente no Canadá. Além do comprometimento oficial com uma política nacional de bilinguismo e aquisição de um segundo idioma, a imigração transformou o Canadá em uma nação rica em termos de bilinguismo e multiculturalismo. As escolas públicas, principalmente nos principais centros urbanos, recebem um grande número de crianças para as quais o inglês ou o francês são um segundo idioma. Essas crianças representam uma enorme variedade de idiomas maternos e frequentemente são maiorias em uma sala de aula. É imperativo, portanto, que compreendamos o impacto  desses  contextos  linguísticos sobre o  futuro   cognitivo e educacional das crianças. 

Problemas

Informações sobre o desenvolvimento linguístico, cognitivo e educacional de crianças com backgrounds linguísticos diversificados são essenciais para a interpretação do desempenho dessas crianças na escola e para a avaliação de seu desenvolvimento. Por exemplo, crianças com proficiência limitada no idioma utilizado na escola certamente terão mais dificuldades acadêmicas e sociais, e é importante identificar essas dificuldades para compreender quais intervenções ou abordagens remediadoras são necessárias.  

Contexto de pesquisa

As pesquisas científicas são realizadas tipicamente em salas de aula, que frequentemente são ambientes que incluem crianças bilíngues e monolíngues. O contexto em que ocorre o bilinguismo ou o segundo idioma é importante, embora nem sempre seja incluído como um aspecto formal das investigações. Existem evidências de que a situação majoritária ou minoritária do idioma materno da criança, a valorização desse idioma na comunidade e sua utilização como instrumento para a alfabetização afetam os resultados linguísticos e cognitivos da criança.5 Portanto, em condições ideais, as implicações da experiência linguística da criança deveriam ser examinadas com muita atenção aos fatores sociais e linguísticos que descrevem o ambiente social e educacional da criança.

Questões-chave de pesquisa

As questões importantes derivadas da diversidade linguística são os resultados cognitivos e educativos das crianças bilíngues. Em primeiro lugar, é necessário estabelecer se a aquisição de linguagem ocorre no mesmo ritmo e da mesma forma em crianças que aprendem simultaneamente dois idiomas ou que estão aprendendo um segundo idioma depois de terem dominado um primeiro. Em segundo lugar, serão as crianças capazes de adquirir habilidades de leitura e escrita na escola, sendo elas bilíngues ou estando elas aprendendo um segundo idioma, particularmente se seu idioma materno não é o idioma de instrução? Por fim, haverá consequências para o desenvolvimento cognitivo normal em termos da capacidade da criança de adquirir novos conceitos ou de desempenhar diversos cálculos – por exemplo, em aritmética –, especialmente se a instrução escolar se dá no idioma no qual a proficiência da criança é mais limitada? 

Resultados de pesquisas recentes

Essas pesquisas produziram três resultados principais. Em primeiro lugar, em termos de proficiência geral em linguagem, crianças bilíngues tendem a ter um vocabulário menor em cada um dos idiomas do que crianças monolíngues em seu próprio idioma.6 Entretanto, sua compreensão da estrutura linguística, denominada consciência metalinguística, é pelo menos tão boa7 e frequentemente melhor8 do que a de pares monolíngues. Em segundo lugar, para essas crianças, a aquisição de habilidades de leitura e escrita depende da relação entre os dois idiomas9 e do nível de proficiência no segundo idioma.10 Especificamente, crianças que aprendem a ler em dois idiomas que compartilham um sistema de escrita – por exemplo, inglês e francês – apresentam progressos mais rápidos na aprendizagem de leitura; crianças cujos idiomas são escritos em sistemas diferentes – por exemplo, inglês e chinês – não evidenciam nenhuma vantagem especial, mas também não apresentam nenhum deficit em comparação a crianças monolíngues. No entanto, para haver benefício da aprendizagem de leitura em dois idiomas é necessário que as crianças sejam bilíngues, e não aprendizes de um segundo idioma, quando a competência em um deles é limitada. Em terceiro lugar, em comparação com pares monolíngues, crianças bilíngues entre 4 e 8 anos de idade evidenciam vantagens significativas na resolução de problemas que requerem controle da atenção a aspectos específicos da formulação e, ao mesmo tempo, inibição da atenção a aspectos enganadores, que são apresentados com destaque, porém estão associados a uma resposta incorreta. Essa vantagem não se limita ao processamento de linguagem, mas inclui uma diversidade de tarefas não verbais que requerem controle da atenção e seletividade em problemas, tais como formação de categorias conceituais,11 visualização de imagens alternativas em figuras ambíguas,12 e compreensão de diferenças entre a aparência e a realidade de um objeto enganoso.13 Essas diferences persistem ao longo de toda a vida, conferindo vantagens cognitivas aos bilíngues, seja qual for a idade, et fornecendo, inclusive, uma reserva cognitiva que Ihes possibilita intervir com total autonomia, até mesmos nos primeiros estágios da demência.14

Conclusão

Os resultados desses estudos demonstram que o bilinguismo na infância é uma experiência significativa, que tem o poder de influenciar o curso e a eficiência do desenvolvimento infantil. O resultado mais surpreendente é que essas influências não se limitam ao domínio linguístico, no qual seriam esperadas, mas estendem-se a habilidades cognitivas não verbais. Na maioria dos casos, o grau de envolvimento da criança com um segundo idioma, definido como a diferença entre o bilinguismo e a aquisição de segunda língua, é uma variável importante que determina o grau e o tipo de influência observados. Foram identificados nesses estudos três padrões de influência. Em um dos resultados, o bilinguismo não faz diferença, e há um desenvolvimento equivalente e no mesmo ritmo em crianças monolíngues e bilíngues. Essa situação foi observada em relação a problemas cognitivos, tais como desenvolvimento de capacidade de armazenamento da memória, e a problemas linguísticos, tais como consciência fonológica. No segundo, bilinguismo traz algum tipo de desvantagem para a criança. O exemplo típico é o desenvolvimento do vocabulário em cada idioma. No terceiro padrão, que é o mais prevalente em nossos estudos, o bilinguismo é uma força positiva, que promove o desenvolvimento linguístico e cognitivo das crianças, melhorando o acesso à leitura e escrita quando os dois sistemas de escrita são correspondentes e o desenvolvimento de processos executivos, de maneira geral, para todas as crianças bilíngues na resolução de problemas que demandam atenção e controle. Essas habilidades executivas de controle são nucleares no pensamento inteligente. 

Implicações

Frequentemente, os pais preocupam-se com a possibilidade de que a utilização em casa de um idioma que não é o da comunidade resulte em desvantagens para seus filhos. Este programa de pesquisa oferece evidências sólidas de que o efeito predominante do bilinguismo no lar é positivo. As desvantagens são relativamente reduzidas e facilmente superadas.

As implicações para a escolarização são mais complexas. O sucesso da criança na escola depende muito de sua proficiência no idioma de  instrução, uma relação que se mantém para atividades linguísticas importantes – por exemplo, aprender a ler –, assuntos computacionais não verbais – por exemplo, matemática – e currículos baseados em conteúdos – por exemplo, estudos sociais. Em todos esses casos, as crianças precisam ter habilidades nas formas e nos significados do idioma escolar, e devem ser leitores competentes nesse idioma.

Crianças bilíngues talvez não apresentem o mesmo nível de seus pares monolíngues, e aprendizes de um segundo idioma cujo idioma materno não é o inglês ou o francês talvez não tenham desenvolvido habilidades suficientes no idioma de instrução para ter sucesso na escola, ainda que a diferença de vocabulário entre as crianças monolíngue e bilíngues desapareça se considerarmos unicamente o vocabulário escolar.6

As evidências sobre os efeitos predominantemente positivos do bilinguismo, ao lado das evidências de que crianças bilíngues não apresentam deficits cognitivos, indicam o papel importante das escolas no provimento de meios para que essas crianças desenvolvam suas habilidades linguísticas no idioma escolar de forma a ter participação integral na sala de aula, e usufruir dos benefícios mais positivos de sua experiência educacional. 

Referências

  1. review in Hakuta K. Mirror of language: the debate on bilingualism. New York, NY: Basic Books; 1986.
  2. Macnamara JT. Bilingualism and primary education: a study of Irish experience. Edinburgh, Scotland: Edinburgh University Press; 1966.
  3. Peal E, Lambert WE. The relation of bilingualism to intelligence. Psychological Monographs 1962;76(27, Whole No. 546):1-23. 
  4. Barac R, Moreno S, Bialystok E. Behavioral and electrophysiological differences in executive control between monolingual and bilingual children. Child Development 2016;87:1277-1290.
  5. Cummins J. Linguistic interdependence and the educational development of bilingual children. Review of Educational Research 1979;49(2):222-251.
  6. Bialystok E, Luk G. Receptive vocabulary differences in monolingual and bilingual adults. Bilingualism: Language and Cognition 2012;15:397-401.
  7. Bialystok E, Majumder S, Martin MM. Developing phonological awareness: Is there a bilingual advantage? Applied Psycholinguistics 2003;24(1):27-44.
  8. Bialystok E. Levels of bilingualism and levels of linguistic awareness.  Developmental Psychology 1988;24(4):560-567.
  9. Bialystok E, Luk G, Kwan E. Bilingualism, biliteracy, and learning to read:  Interactions among languages and writing systems. Scientific Studies of Reading 2005;9(1):43-61.
  10. Bialystok E, McBride-Chang C, Luk G. Bilingualism, language proficiency, and learning to read in two writing systems. Journal of Educational Psychology. 2005:97(4):580-590.
  11. Bialystok E, Martin MM. Attention and inhibition in bilingual children: Evidence from the dimensional change card sort task. Developmental Science 2004;7(3):325-339.
  12. Bialystok E, Shapero D. Ambiguous benefits: the effect of bilingualism on reversing ambiguous figures. Developmental Science 2005;8(6):595-604.
  13. Bialystok E, Senman L. Executive processes in appearance-reality tasks: The role of inhibition of attention and symbolic representation. Child Development 2004;75(2):562-579.
  14. Bialystok E. The bilingual adaptation: How minds accommodate to experience. Psychological Bulletin 2017;143:233-262.

Para citar este artigo:

Bialystok E. Aquisição do segundo idioma e bilinguismo na primeira infância e seu impacto sobre o desenvolvimento cognitivo inicial. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/segundo-idioma/segundo-especialistas/aquisicao-do-segundo-idioma-e-bilinguismo-na-primeira-infancia. Atualizada: Setembro 2017 (Inglês). Consultado em 4 de outubro de 2024.

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