Distúrbios do sono em crianças pequenas: impactos sobre o desenvolvimento socioemocional e opções de tratamento. Comentários sobre France, Wiggs e Owens


The Michael S. Aldrich Sleep Disorders Center, University of Michigan, EUA
(Inglês). Tradução: julho 2012

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Introdução

Os cinco primeiros anos de vida são acompanhados por profundas mudanças na duração, na distribuição e no caráter do sono. A paisagem diversificada do desenvolvimento normal durante esses anos diferencia o que é normal e anormal, benigno ou com consequências potenciais, causas e efeitos – frequentemente assumidos sem crítica pelas áreas mais estabelecidas de pesquisa sobre serviços de saúde – o que constitui o maior desafio. Dados ainda iniciais sugerem que uma compreesão básica sobre essas questões poderia ter um impacto substancial sobre a saúde pública no futuro. Entre os distúrbios do sono em crianças, diversos são altamente prevalentes, a maioria pode ser facilmente diagnosticada, e praticamente todos podem ser tratados. Os resultados do tratamento têm boa probabilidade de oferecer benefícios significativos para as crianças e suas famílias, às vezes durante muitos anos e inclusive na vida adulta.

Os últimos dez anos foram um período de investigação frutífera quanto a problemas de sono na primeira infância, seu impacto sobre o desenvolvimento e o comportamento e seu tratamento. Karyn France, Neville Blampied, Luci Wiggs e Judith Owens deram contribuições críticas e originais nessas áreas.1-3 Nos presentes textos, esses autores destacam a pesquisa recente sobre a natureza e o tratamento de problemas de sono em bebês e crianças pequenas.

Pesquisas e conclusões

Em sua revisão, France e Blampied oferecem um panorama conciso e inspirador sobre as características fundamentais que definem o “dormir bem”.  A seguir  descrevem de  que forma mudanças no sono relacionadas com a idade e as complexas interrelações entre criança, família, ambiente e cultura podem influenciar a consecução dessa meta.  A distinção entre distúrbios psicossociais do sono e aqueles que são mais biológicos, neurológicos ou maturacionais é útil conceitualmente e também para a discussão apresentada, mas não devem obscurecer o fato de que existem dezenas de diagnósticos e distúrbios específicos do sono em crianças pequenas, ou de que podem existir áreas importantes de sobreposição entre essas duas categorias amplas. É justificável que France e Blampied salientem, em sua discussão sobre a evidência disponível, a efetividade das intervenções comportamentais, em contraste com a virtual ausência de indicações comprovadas para tratamento medicamentoso. Certamente também é válida a ênfase na preparação dos pais para as intervenções relativas ao sono.

Wiggs oferece informações contextuais adicionais que são essenciais para a compreensão da importância dos problemas de sono em crianças: essas condições afetam entre 25% e 50% das crianças pequenas, e em geral seu impacto adverso estende-se também a outros membros da família. Em contraste com France e Blampied, Wiggs enfatiza mais o fato de que ainda não foram realizados estudos prospectivos, longitudinais, com medidas objetivas e independentes para determinar “a relação causal entre distúrbios do sono e desenvolvimento patológico da criança”. Também aponta, corretamente, que ainda há muito por ser descoberto sobre quaisquer mecanismos fisiológicos subjacentes que possam associar os distúrbios do sono com seu impacto sobre o desenvolvimento comportamental, social e emocional. Ainda estão por ser feitos estudos de longo prazo sobre a eficácia das intervenções, bem como investigações sobre as limitações dos tratamentos atuais. Na falta desses estudos, os clínicos frequentemente prescrevem medicamentos apesar das preocupações com desenvolvimento de tolerância a drogas, efeitos colaterais e reincidência da insônia; os pais podem recusar tratamentos comportamentais seguros e eficazes, como a extinção (o processo de eliminação ou redução de uma resposta condicionada pela retirada do reforçamento), devido à impressão de que podem ser prejudiciais para seu filho.

Owens comenta também a alta prevalência de problemas de sono na primeira infância, e as evidências de que esses problemas podem persistir e tornar-se crônicos mais tarde. Ela assinala o ponto crítico de que a “sonolência” infantil – o estado que resulta de sono inadequado ou insuficiente – está reconhecidamente associada a oscilações negativas de humor, comportamento e funções cognitivas mediadas pelo córtex pré-frontal. Owens sugere que os distúrbios do sono ou a sonolência podem produzir esses resultados. A maioria dos especialistas concordaria, mas a ênfase neste momento deveria ser na palavra “podem”. Ensaios randomizados, com controle placebo e procedimento duplo cego ainda não demonstraram relações de causa e efeito, ou a eficácia das intervenções. Owens prossegue fazendo diversas observações singulares, porém críticas. As crianças potencialmente mais vulneráveis a problemas de sono podem ser aquelas que têm menor probabilidade de identificação ou tratamento desses problemas. O sono “problemático” ainda não foi adequadamente definido em crianças pequenas, em parte porque o âmbito do “normal” e do “patológico” parece ser tão amplo e sujeito ao contexto socioeconômico, familiar ou cultural. Owens arrisca-se a fazer um resumo importante e razoável da pesquisa existente ao escrever que a extinção e a educação parental são abordagens bem-estabelecidas e eficazes aos problemas de sono. Segundo os critérios Chambless (critérios para a avaliação empírica de tratamentos psicológicos), a extinção graduada e o despertar programado provavelmente são eficazes, e rotinas positivas são uma intervenção promissora.

Implicações

Em conjunto, French, Blampied, Wiggs e Owens apresentam um argumento forte para o apoio a políticas e serviços que abordam efetivamente uma classe de condições de saúde (os distúrbios de sono na primeira infância) que são altamente prevalentes, diagnosticáveis e tratáveis. As recomendaçãoes específicas feitas por cada um dos autores são todas justificáveis. Crianças de 0 a 5 anos de idade passam quase 50% de seu tempo satisfazendo a necessidade de sono do cérebro em desenvolvimento: não surpreende que, quando o sono é perturbado, o mesmo possa ocorrer com o desenvolvimento do comportamento, da cognição, da interação social e da regulação emocional. As evidências disponíveis dão forte sustentação à eficácia de intervenções baseadas no comportamento para as causas mais comuns da insônia infantil. Os autores estão certos ao enfatizar que esforços amplos para prevenir o aparecimento desses problemas em aproximadamente um terço das crianças merecem ser estudados e podem apresentar bom custo-benefício. Tal como o tratamento, a prevenção provavelmente exigirá melhor educação dos profissionais e dos pais a respeito da importância do sono, de bons hábitos de sono, e das interaçãoes pais-filhos que podem promover um sono adequado. A maioria dos pais já discute o sono com seus pediatras ou médicos de família, mas apenas no contexto de enfermidades agudas. Raramente são mencionados sintomas de distúrbios crônicos do sono, raramente são feitos diagnósticos primários sobre o sono e raramente é implementado um tratamento efetivo.4 A educação em medicina do sono é quase inexistente no currículo das escolas médicas e nos programas de treinamento de médicos residentes.5-7 Entrementes, um recenseamento com quase 1500 pais norte americanos realizado pela Fundação Nacional do Sono em 2003 verificou que dois terços deles identificaram algum problema de sono em seus filhos e, segundo o 2004 Sleep in America Poll (Censo sobre o Sono na América de 2004), realizado pela Fundação Nacional do Sono, em Washington D.C., 75% dos pais fariam alguma mudança relativa ao sono dos filhos, se pudessem. Quando problemas de sono são apresentados aos pediatras ou aos médicos de família, muitos respondem prescrevendo medicamentos alternativos cuja utilização em crianças tem pouca sustentação em pesquisas publicadas.3

De modo geral, os artigos de France e Blampied, Wiggs e Owens limitam suas descrições dos “programas e serviços” mencionados no título à interação individual entre um clínico e uma criança encaminhada para atendimento. Infelizmente, são raros os esforços programáticos de larga escala para a abordagem dos problemas de sono na infância. As exceções são a Back to Sleep Campaign (Campanha Volte a Dormir), que reduziu dramaticamente a incidência da síndrome de morte infantil súbita, e a recomendação da Academia Americana de Pediatria em 2002, de que se perguntasse a todas as famílias se seus filhos roncavam. A efetividade das intervenções comportamentais para problemas “psicossociais” comuns de sono fala em favor de pesquisas sobre programas amplos de educação de pais sobre prevenção e tratamento, baseados na escola, na pré-escola e na comunidade. São necessárias muito mais pesquisas para determinar se o “desenvolvimento social e emocional” da criança é de fato prejudicado por causa dos distúrbios do sono; em caso positivo, que aspectos são prejudicados; com que frequência; por meio de que mecanismos; e devidos a qual diagnóstico específico relativo ao sono. A epidemiologia e o impacto potencial esboçados nestes artigos sugerem que essas pesquisas deveriam ter prioridade máxima.

As políticas públicas deveriam apoiar a pesquisa sobre o sono humano normal e os distúrbios médicos do sono. A medicina do sono é um campo novo, e é ainda mais novo dentro da pediatria. Perguntas básicas para as quais não há respostas incluem qual a quantidade de sono de que crianças pequenas precisam, e de que forma determinar essa quantidade para cada criança em particular. Acredita-se que o sono insuficiente tenha um impacto fundamental sobre os adultos, mas seu impacto sobre as crianças não está igualmente bem-pesquisado, muito embora as preocupações com o desenvolvimento tendam a somar-se àquelas que se relacionam com a função imediata ou próxima. O censo da Fundação Nacional do Sono provocou muita atenção quando relatou que bebês, crianças pequenas e pré-escolares estavam tendo, em média, cerca de uma a duas horas de sono a menos do que o usualmente considerado necessário. Embora distúrbios médicos do sono sejam menos comuns do que distúrbios comportamentais, seu impacto na ausência de tratamento pode incluir ramificações diversificadas e irreversíveis na vida adulta. A pesquisa sobre distúrbios do sono em pacientes pediátricos pode afetar áreas essenciais para o bem-estar social, desde a frequência de amigdalectomia em crianças8 até o desempenho escolar9 e a agressão infantil.10

Na Universidade de Michigan, o reconhecimento das interações complexas do sono com o comportamento levou muitas crianças a serem encaminhadas a uma Clínica Pediátrica Multidisciplinar de Sono e Comportamento. Em uma mesma manhã, as crianças e suas famílias se consultam tanto com um especialista médico (neurologia ou medicina pulmonar) e com um especialista em comportamento (psicologia infantil ou pediatria comportamental). Ao final de cada consulta, conferências a respeito do caso criam a oportunidade para que especialistas com várias formações avaliem e sintetizem as informações obtidas. Os resultados frequentemente incluem abordages multifacetadas que, idealmente, abordam as complexas e interrelacionadas patologias desenvolvidas pela maioria das crianças. Os sistemas de saúde muitas vezes não reembolsam os custos efetivos desses esforços clínicos concentrados em termos de tempo.  Em vista dos diversos benefícios que podem decorrer do tratamento efetivo de distúrbios do sono na primeira infância, os sistemas de saúde deveriam criar modos inovadores de dar apoio às abordagens interdisciplinares necessárias, que provavelmente terão seu custo compensado para a sociedade no longo prazo.

Referências

  1. France KG, Balmpied NM. Infant sleep disturbance: Description of a problem behaviour process. Sleep Medicine Reviews 1999;3(4):265-280.
  2. Wiggs L, Stores G. Behavioural treatment for sleep problems in children with severe learning disabilities and challenging daytime behaviour: Effect on daytime behaviour. Journal of Child Psychology and Psychiatry and Allied Disciplines 1999;40(4):622-635.
  3. Owens JA, Rosen CL, Mindell JA. Medication use in the treatment of pediatric insomnia: Results of a survey of community-based pediatricians. Pediatrics 2003;111(5):e628-e635.
  4. Chervin RD, Archbold KH, Panahi P, Pituch KJ. Sleep problems seldom addressed at two general pediatric clinics. Pediatrics 2001;107(6):1375-1380.
  5. Rosen RC, Rosekind M, Rosevear C, Cole WE, Dement WC. Physician education in sleep and sleep disorders: A national survey of United-States medical schools. Sleep 1993;16(3):249-254.
  6. Mindell JA, Moline ML, Zendell SM, Brown LW, Fry JM. Pediatricians and sleep disorders: training and practice. Pediatrics 1994;94(2 Pt 1):194-200.
  7. Rosen R, Mahowald M, Chesson A, Doghramji K, Goldberg R, Moline M, Millman R, Zammit G, Mark B, Dement W. The Taskforce 2000 survey on medical education in sleep and sleep disorders. Sleep 1998;21(3):235-238.
  8. Weatherly RA, Mai EF, Ruzicka DL, Chervin RD. Identification and evaluation of obstructive sleep apnea prior to adenotonsillectomy in children: a survey of practice patterns. Sleep Medicine 2003;4(4):297-307.
  9. Gozal D. Sleep-disordered breathing and school performance in children. Pediatrics 1998;102(3):616-620.
  10. Chervin RD, Dillon JE, Archbold KH, Ruzicka DL. Conduct problems and symptoms of sleep disorders in children. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry 2003;42(2):201-208.

Para citar este artigo:

Hoban TF, Chervin RD. Distúrbios do sono em crianças pequenas: impactos sobre o desenvolvimento socioemocional e opções de tratamento. Comentários sobre France, Wiggs e Owens. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Petit D, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/sono/segundo-especialistas/disturbios-do-sono-em-criancas-pequenas-impactos-sobre-o-desenvolvimento. Publicado: Setembro 2004 (Inglês). Consultado em 19 de abril de 2024.

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