Consumo de tabaco durante a gravidez e seu impacto sobre o desenvolvimento da criança. Comentários sobre Fergusson e Fried


University of Chicago, EUA
(Inglês). Tradução: julho 2012

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Introdução

Os doutores Ferguson e Fried resumiram de forma eloquente a crescente literatura a respeito da exposição pré-natal ao cigarro como um poderoso fator de risco para dificuldades neuropsicológicas e comportamentos problemáticos – particularmente distúrbios de conduta (DC), delinquência e tabagismo. Como apontam esses autores, o conjunto de evidências existente apoia consistentemente essa relação, mas não demonstra um efeito causal. Juntamente com as evidências que vêm se acumulando, suas revisões nos levam forçosamente aos seguintes pontos:

a)Existem vínculos sistemáticos entre a exposição pré-natal ao tabaco e um distúrbio psiquiátrico específico.

A singularidade da associação com DC é pioneira no campo da teratologia comportamental, contrastando com a escassez de efeitos comportamentais sistemáticos da exposição pré-natal às drogas ilícitas.1,2

b)A identificação de um fator de risco pré-natal e evitável para DC e tabagismo juvenil traz profundas implicações para a prevenção.

DC e tabagismo juvenil são problemas graves de saúde pública. Embora haja evidências crescentes de que eventos no início da vida têm uma influência duradoura sobre o desenvolvimento,3 a exposição pré-natal ao tabagismo tem a singularidade de ser um fator de risco facilmente quantificável e potencialmente modificável.  

c)A relação entre a exposição pré-natal ao tabagismo e desfechos comportamentais adversos parece ser complexa e não linear.

As vulnerabilidades associadas à exposição pré-natal ao fumo já estão presentes na infância. Fatores pós-natais modificáveis alteram os riscos para os bebês expostos. Há evidências de diferenças entre os sexos quanto aos efeitos em longo prazo.4

d)A pesquisa sobre efeitos comportamentais da exposição pré-natal à fumaça de cigarro fornece um rico modelo para o estudo da interação de processos biológicos e sociais na psicopatologia no desenvolvimento.

Pesquisas e conclusões

Atualmente, há dezenas de estudos que estabelecem relações entre exposição pré-natal ao tabaco, problemas de conduta pós-natal e tabagismo na juventude. (Para uma revisão mais extensa, ver referências5-8) Fried também demonstrou consistentemente uma associação entre a exposição ao tabaco e dificuldades neuropsicológicas específicas.9 Hoje já está firmemente estabelecido que: 

  1. a associação entre exposição pré-natal à fumaça do cigarro e comportamentos adversos é consistente em populações e períodos de desenvolvimento diversos e é resiliente a fatores de confusão; e
  2. a nicotina é um teratogênico comportamental.  

Portanto, a conclusão de Fergusson de que a exposição pré-natal ao tabagismo “pode” estar relacionada ao aumento de risco de desfechos comportamentais adversos parece excessivamente conservadora no atual estado do conhecimento. Parece incontestável que a exposição pré-natal ao tabaco está associada a desfechos comportamentais adversos. O que é preciso estabelecer agora é a natureza dessa associação. Uma vez que uma nova replicação não aumentará significativamente nosso conhecimento sobre este fenômeno, devemos passar resolutamente a testes mais explícitos dos modelos causais e ao delineamento de caminhos.  

Fergusson e Fried sustentam corretamente que estabelecer causalidade é uma tarefa temerária e destacam desafios críticos nessa área. Entretanto, esses desafios não devem nos impedir de conceber estudos que abrirão o campo para se chegar a conclusões significativas a partir da descoberta de mecanismos causais relevantes. O estado-da-arte nesta área de pesquisa nos permite gerar uma agenda abrangente para pesquisas futuras, como se propõe a seguir:

1. Identificação dos Mecanismos Subjacentes

a.Biológicos

Fergusson se concentra fundamentalmente na importância da identificação dos mecanismos biológicos, particularmente em estudos com animais. Sublinha também a dificuldade de se traduzir conclusões de estudos com animais para explicar comportamentos humanos complexos. Felizmente, o estado atual de conhecimento permite a integração entre a ciência básica e a observacional, incluindo a combinação de técnicas neuroquímicas e de imagem com estudos observacionais de comportamento bem executados.5

A mensuração relativamente incipiente da exposição pré-natal ao tabaco nos estudos existentes também limitou nossa compreensão sobre os mecanismos biológicos. Chegou o momento de realizar estudos prospectivos delineados para elucidar processos teratológicos em relação a desfechos clínicos. Tais estudos exigirão uma mensuração biológica precisa e recorrente da exposição para demonstrar efeitos relacionados a limiar, época e dose-resposta.  

b.Do desenvolvimento 

A natureza de desenvolvimento desses processos nunca será excessivamente enfatizada. Portanto, o estabelecimento dos percursos de desenvolvimento subjacentes é tão vital quanto a elucidação dos mecanismos puramente biológicos. Um modelo etiológico provável é que as vulnerabilidades neurocomportamentais relacionadas à exposição aumentem a suscetibilidade a outros riscos. O trabalho de Fried fornece um rico retrato do curso de desenvolvimento de tais vulnerabilidades. Entretanto, até hoje, investigações clínicas e neurocomportamentais têm sido realizadas separadamente e os estudos clínicos focalizaram distúrbios distintos, e não seus processos subjacentes. Precisamos, agora, de uma abordagem longitudinal, mais integradora, que identifique vulnerabilidades precursoras abrangendo vários domínios e que examine suas transformações ao longo do tempo e suas contribuições – independentes e interativas para desfechos adversos.4

2. Estabelecimento das maneiras pelas quais a exposição pré-natal ao tabaco se inter-relaciona com outros riscos nos percursos rumo a problemas comportamentais 

a.Considerando explicações alternativas 

Fried e Fergusson fazem notar que fatores de confusão óbvios já foram descartados em nível básico. Portanto, é necessária agora uma abordagem mais sofisticada para a consideração de explicações alternativas. Uma vez que os estudos clínicos iniciais, por exemplo, não foram originalmente planejados para examinar os efeitos da exposição pré-natal ao tabaco, os filhos de fumantes eram comparados a filhos de não fumantes. Esses grupos diferem dramaticamente em praticamente todos os níveis de risco. Um exame mais rigoroso desta questão requer a caracterização de diferenças psiquiátricas e psicossociais entre as mulheres que param de fumar durante a gravidez e aquelas que fumam durante todo o período gestacional. Este exame levará ao desenvolvimento de hipóteses testáveis sobre os efeitos da exposição em si versus o fato mais ambíguo de “ter uma mãe que fuma”. 

Em outro exemplo, Fergusson enfatiza fatores genéticos como um fator de confusão que ainda não foi medido. De fato, em praticamentemente todos os estudos clínicos, os fatores genéticos foram controlados por meio da avaliação da história psiquiátrica dos progenitores. Isso não alterou apreciavelmente a associação. Portanto, até agora, não há evidências que respaldem a teoria de que a associação entre tabagismo e problemas de comportamento não seja legítima quanto a fatores genéticos. Entretanto, uma vez que mensurações de expressões fenotípicas não capturam inteiramente a variação genotípica, o controle estatístico da história parental não distingue o papel específico dos fatores genéticos – o que exigiria desenhos de pesquisa geneticamente informados. Dado o estado atual de conhecimento, pode ser mais frutífero considerar fatores genéticos como uma parte integrante de um processo causal complexo, e não, fundamentalmente, como fatores de confusão.

b.Desenvolvendo e testando modelos integrados

Concordamos veementemente com a perspectiva de Fried de que o mecanismo subjacente ao efeito provavelmente envolve uma interação complexa de fatores. É provável que trabalhar com esta perspectiva se mostre mais frutífero do que uma abordagem do tipo ou isto/ou aquilo Interações podem ocorrer em qualquer ponto do trajeto do desenvolvimento, tanto in utero – por exemplo, suscetibilidade genética potencializada pela exposição8,10 – como no pós-natal – por exemplo, ambientes domésticos positivos reduzem o risco na primeira infância.4 Esta abordagem é complexa e requer um estudo longitudinal cuidadosamente planejado para estabelecer para quem, em que circunstâncias e de que forma a exposição pré-natal ao tabaco está vinculada a desfechos  comportamentais adversos.

Implicações para as perspectivas de políticas e serviços 

Fergusson, prudentemente, recomenda cautela quanto à fundamentação de políticas sobre suposições prematuras de causalidade. Por outro lado, Fried argumenta de maneira convincente que provas definitivas de causalidade não são condição necessária para a utilização do crescente conjunto de evidências como mais um imperativo de intensificação dos esforços de prevenção. 

Uma vez que os esforços de saúde pública para fomentar o abandono do uso do tabaco só obtêm sucesso junto a uma minoria de mulheres,11 estas descobertas nos compelem ainda mais a desenvolver estratégias mais eficazes de prevenção para a gestante que fuma. As novas gerações de crianças não podem esperar. A gravidade potencial de sequelas em longo prazo, combinada com as consequências perinatais já bem estabelecidas, requer uma ênfase maior na redução de danos.12 Quanto mais cedo as meninas começam a fumar, maior é a probabilidade de que fumem durante a gravidez. Isto cria uma urgência adicional para que a prevenção do fumo entre os jovens comece bem antes da adolescência.

O custo econômico do tabagismo foi subestimado porque não foram contabilizados os custos intergeracionais substanciais em curto e em longo prazo.13-16 Portanto, redobrar os esforços para aumentar os recursos dedicados à redução deste comportamento materno que pode ser prevenido não é apenas um imperativo social, mas também um imperativo econômico.

Concluindo, os Drs. Fergusson e Fried forneceram um panorama abrangente e atualíssimo que nos serve como alicerce para o trabalho futuro. Ao partirmos destes alicerces para os próximos estágios da descoberta científica, muito se aprenderá, não apenas sobre a exposição pré-natal ao tabaco e sobre o tabagismo, mas, também, numa perspectiva mais ampla, sobre o cérebro e as interações ambientais nos percursos do comportamento normal e da psicopatologia.

Referências

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  11. Orleans CT, Barker DC, Kaufman NJ, Marx JF. Helping pregnant smokers quit: Meeting the challenge in the next decade. Tobacco Control 2000;9(suppl 3):6-11.
  12. Windsor RA, Li CQ, Boyd NR, Hartmann KE. The use of significant reduction rates to evaluate health education methods for pregnant smokers: A new harm reduction behavioral indicator? Health Education & Behavior 1999;26(5):648-62.
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Para citar este artigo:

Wakschlag LS. Consumo de tabaco durante a gravidez e seu impacto sobre o desenvolvimento da criança. Comentários sobre Fergusson e Fried . Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Wakschlag LS, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/tabagismo-e-gravidez/segundo-especialistas/consumo-de-tabaco-durante-gravidez-e-seu-impacto-sobre--2. Publicado: Junho 2002 (Inglês). Consultado em 29 de março de 2024.

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