O programa de ensino e a brincadeira no desenvolvimento na primeira infância


Mid-contient Research on Education and Learning, EUA, Metropolitan State College of Denver, EUA
(Inglês). Tradução: fevereiro 2013

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Introdução

A necessidade de integrar o brincar nos programas de ensino para a primeira infância está sustentada em décadas de pesquisas sobre o desenvolvimento da criança e aparece nos mais recentes documentos publicados por organismos profissionais como o National Association for the Education of Young Children1,2 e o National Research Council nos Estados-Unidos.3,4 Entretanto, os diferentes aspectos da relação entre a brincadeira e o programa de ensino deixam margem a interpretações que afetam as opiniões dos profissionais da primeira infância assim como suas práticas em sala de aula.

Do que se trata

Um dos motivos para a existência de muitas interpretações é a aparente contradição entre o significado da palavra “brincadeira” e da expressão “programa de ensino”, prevalente tanto na literatura profissional quanto na linguagem quotidiana dos professores e dos pais de crianças pequenas: tradicionalmente, a brincadeira é vista como uma atividade espontânea iniciada pela criança e que não atende nenhuma necessidade prática,5 enquanto que o programa de ensino está associado a uma transmissão deliberada de conhecimentos para a realização de objetivos pedagógicos claros.6 Além disso, a brincadeira não é um constructo específico mas antes um continuum de comportamentos lúdicos que as crianças adotam nas salas de aula para a primeira infância, e que envolve uma série de comportamentos que variam em função da orientação e do apoio de um adulto.7

Contexto da pesquisa e resultados de estudos recentes

As pesquisas sobre a brincadeira no contexto da educação para a primeira infância têm tratado de dois aspectos da relação entre a brincadeira e o programa de ensino. Um grupo de pesquisadores investigou a utilização de elementos, ambientes ou motivação para brincar como forma de melhorar o ensino de matérias obrigatórias como alfabetização inicial,8,9 matemática10,11 ou ciências,12 ou para promover áreas específicas do desenvolvimento como as competências socioemocionais,13 a expressão oral14,15 ou a motricidade grossa e fina.16 Esses estudos se concentram principalmente no respectivo campo acadêmico ou em um aspecto específico do desenvolvimento, a brincadeira sendo vista como um meio de promover o desenvolvimento da criança nesses setores. Depois de comunicados aos educadores da primeira infância, os resultados desses estudos são traduzidos em sugestões práticas sobre a maneira de criar ambientes para brincadeiras propícias ao aprendizado da alfabetização inicial ou das operações numéricas, e de incorporar um vocabulário próprio a essas matérias escolares básicas nas brincadeiras das crianças.17

Ao mesmo tempo, existe uma longa tradição na pesquisa sobre brincadeira, focalizada nas múltiplas formas da própria brincadeira (por exemplo, as brincadeiras sociais ou de faz-de-conta ou com objetos), reconhecida como uma atividade individual diferente, iniciada pela criança, com suas contribuições únicas para seu desenvolvimento. Essas contribuições estão associadas ao desenvolvimento de competências mais amplas como a capacidade de entender as intenções do outro (a chamada teoria da mente),18 a representação simbólica19 e a autorregulação,20 que não afetam apenas o desenvolvimento da criança na primeira infância, mas têm também efeitos duradouros nos anos escolares e depois. Tradicionalmente, a maioria dos estudos dentro dessa perspectiva tem sido realizada em ambientes naturais, onde a criança se envolve em brincadeiras livres com pouco ou nenhuma orientação de um adulto. As recomendações relativas aos programas de ensino enfatizam a importância de providenciar um espaço físico e implementos adequados para promover as brincadeiras, bem como a necessidade de deixar um tempo suficiente para a brincadeira livre no programa escolar diário, e de manter ou aumentar os períodos de recreio para as crianças na creche ou na escola de primeiro grau.21,22

Perguntas chaves para a pesquisa e lacunas

A relação entre a qualidade da brincadeira e o aprendizado e os resultados para o desenvolvimento da criança precisa de mais pesquisas. Está ficando evidente que nem todas as brincadeiras têm o mesmo valor e que quando crianças mais velhas se envolvem em um tipo de brincadeira mais típica de crianças menores, elas talvez não aproveitem todas as vantagens geralmente associadas à brincadeira.23,24 Algumas perguntas permanecem a respeito de saber quais são as características da brincadeira “madura” ou “totalmente desenvolvida” para cada faixa etária, e que parâmetros podem ser utilizados para medir os diferentes tipos ou níveis de brincadeiras em diferentes atividades. Por exemplo, as habilidades adquiridas ao brincar com blocos são as mesmas que aquelas aprendidas em uma brincadeira de faz-de-conta? Essas brincadeiras deveriam ser avaliadas de forma diferente?

A essas perguntas está ligada a escassez de estudos sobre estratégias educativas elaboradas com o objetivo de apoiar a brincadeira para chegar a seu nível mais maduro. A ideia de que é preciso ensinar às crianças pequenas como brincar não é nova; entretanto, até pouco tempo atrás, o assunto era abordado sobretudo em termos de melhorar ou de facilitar uma brincadeira que já alcançou um determinado nível de desenvolvimento,25 com instruções de jogo claras sendo limitadas ao contexto da educação especial.26 Embora, há muito tempo, se acredite que as crianças com algum atraso de linguagem ou transtornos emocionais se beneficiam das intervenções nas suas brincadeiras,27 espera-se que as crianças que se desenvolvem normalmente adquiram sozinhas as habilidades para brincar. Ainda que válida no passado, essa maneira de ver não basta mais, porque as importantes mudanças ocorridas na cultura da infância28,29,30,31,32,33 fizeram com que uma sala de aula de nível pré-escolar pode ser o único local onde muitas crianças têm a oportunidade de aprender a brincar.34

Outra pergunta que continua sem resposta diz respeito às consequências latentes no longo prazo do envolvimento ou não envolvimento da criança em brincadeiras de diversos tipos e qualidades. Embora existam estudos longitudinais sobre as consequências dos programas destinados à primeira infância baseados ou não na brincadeira,35 eles nem sempre são específicos quanto à natureza das brincadeiras nesses programas ou à faixa de níveis de brincadeira observados nas crianças participantes. Ao mesmo tempo, a maioria dos estudos ligando a brincadeira a competências socioemocionais ou escolares específicas se concentram nos resultados de curto prazo, subestimando talvez a importância da brincadeira no desenvolvimento de uma variedade mais ampla de competências que só serão avaliadas mais tarde. Esse fato é particularmente importante na avaliação dos efeitos da brincadeira no desenvolvimento de competências “superficiais” e de competências “mais profundas”, uma vez que as primeiras podem ser mais facilmente afetadas por intervenções sem brincadeiras, o que pode contribuir para substituir a brincadeira nos programas de ensino destinados a crianças pequenas por estratégias educativas não focadas em brincadeira e com um objetivo pedagógico limitado.

Conclusões e implicações

Independente de sua orientação filosófica, a maioria dos pesquisadores parece estar de acordo quanto à necessidade de incluir brincadeiras no programa de ensino na primeira infância, no intuito de garantir um crescimento e um desenvolvimento ótimos para as crianças pequenas. Contudo, na falta de uma definição comum para o “brincar”, fica difícil apresentar recomendações específicas para aqueles que elaboram os programas de ensino e preconizar a manutenção das brincadeiras nas salas de aula do nível pré-escolar ao mesmo tempo em que se exige cada vez mais uma orientação para as competências acadêmicas. Uma maneira de resolver esse dilema é de utilizar expressões mais específicas, como “aprendizado lúdico”, para fazer a distinção entre a brincadeira espontânea da criança e as atividades iniciadas por um adulto que incluem elementos de brincadeira sob uma ou outra forma. Talvez se evitasse assim as confusões que fazem com que certos programas de ensino são rotulados como “baseados em brincadeira” enquanto que, na realidade, eles não deixam espaço para a própria criança iniciar uma brincadeira. Entretanto, a distinção entre a brincadeira e o aprendizado em contexto de brincadeira deve ficar clara tanto na descrição dos objetivos quanto nos métodos de ensino associados a cada um deles. Além disso, é preciso uma análise mais profunda quanto à maneira dos elementos de brincadeira estarem incorporados ao ensino e verificar se sua utilização está sendo percebida como “lúdica” pelas próprias crianças ou somente pelos educadores.

Referências

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Para citar este artigo:

Bodrova E, Leong DJ. O programa de ensino e a brincadeira no desenvolvimento na primeira infância . Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Smith PK, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/brincar/segundo-especialistas/o-programa-de-ensino-e-brincadeira-no-desenvolvimento-na-primeira. Publicado: Setembro 2010 (Inglês). Consultado em 26 de abril de 2024.

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