Dislexia precoce e seu impacto sobre o desenvolvimento socioemocional inicial


Yale Center for the Study of Learning, Reading, and Attention, EUA
(Inglês). Traduçãoo: dezembro 2011

Versão em PDF

Introdução

A dislexia foi relatada pela primeira vez em 1896, pelo médico inglês W. Pierce Morgan, que descreveu Percy F., um jovem aluno que era brilhante em todos os aspectos, exceto por sua incapacidade de ler.1 Atualmente, mais de um século depois, continuamos a encontrar crianças brilhantes que se esforçam para ler. A dislexia refere-se a uma dificuldade inesperada de leitura, sendo que “inesperada” significa que a criança parece dispor de todos os fatores necessários para a leitura (inteligência, motivação e uma instrução em leitura pelo menos adequada) e ainda assim, enfrenta dificuldades para ler.2 Embora seja referida como uma incapacidade “invisível”, a dislexia tem efeitos profundos sobre a criança, tanto pelo impacto do esforço exigido pela leitura, como pelo alto custo da incapacidade de ler de forma rápida e fluente que geram sentimentos associados de constrangimento e ansiedade. 

Do que se trata

A descoberta-chave em relação à leitura é que ela não é natural, e sim adquirida, e precisa ser ensinada. Embora a leitura tenha raízes na linguagem falada, há diferenças profundas entre falar e ler. A linguagem falada é natural; ao ser exposta a um ambiente falante, a criança aprende a falar por si só. A leitura é adquirida e precisa ser ensinada. Para ler, a criança precisa aprender a fazer conexões entre linhas e círculos (as letras) feitos em uma página e os sons da linguagem falada. Esse processo envolve dois componentes. Em primeiro lugar, a criança precisa desenvolver a percepção de que as palavras faladas são compostas por partículas elementares chamadas fonemas; por exemplo, a palavra “mar” tem três fonemas: “mmm” – “aaa” – “rrr”. Esta capacidade de notar e identificar os sons individuais das palavras faladas chama-se percepção fonêmica. Em seguida, a criança aprende a associar letras a esses sons individuais, um processo conhecido como método fônico ou fonético. Este processo começa com a aprendizagem, pela criança, dos nomes e das formas de cada letra, do reconhecimento das letras e depois da forma de escrevê-las. Na medida em que vai dominando as letras, a criança aprende de que forma elas representam os sons da fala e, depois, como utilizar esse conhecimento para decodificar ou pronunciar palavras isoladamente. Grande parte dessa atividade que envolve sons da fala e letras, começa na educação infantil, período em que é desenvolvida uma base sólida para a leitura.  

Jogos de rimas simples ajudam crianças, já aos três anos de idade, a perceber que as palavras separam-se em partes; para saber que “gato”, “pato” e “rato” rimam, a criança precisa ser capaz de focalizar apenas uma parte das palavras (a rima) – nesta série de palavras, “ato”. Aos poucos, as crianças da educação infantil vão comparando sons de palavras diferentes e aprendem a “trabalhar com palavras”, dividindo-as (segmentação), reunindo-as (combinação) e deslocando partes de uma palavra.3 Atividades simples como bater palmas em sincronia com o número de sons (sílabas) de uma palavra falada ajuda as crianças a aprender como dividir as palavras. Atualmente, existem diversos programas que contribuem para ensinar essas primeiras habilidades a crianças pequenas.4

Problemas

As dificuldades de leitura não são apenas altamente prevalentes (as estimativas variam entre 25% e 40%)5-7; são também persistentes.3,8,9 Isto se contrapõe à noção amplamente difundida, porém incorreta, de que problemas de leitura em crianças pequenas representam um atraso de desenvolvimento que será superado com o tempo. O conhecimento de que problemas precoces de leitura persistem imprime um sentimento de urgência quanto à provisão de uma instrução efetiva em leitura para crianças pequenas. Entre as crianças que têm dificuldades de leitura no terceiro ano do ensino fundamental, 75% continuam a apresentá-las no decorrer da vida escolar.3,7 

Contexto de pesquisa

Muitos estudos, tanto em laboratório como em sala de aula, examinaram aspectos do ensino da leitura relativos ao “o que” e ao “como”, isto é, a influência da instrução sobre componentes específicos do processo de leitura e de que forma são mais efetivamente ensinados. Em particular, esses estudos serviram para abordar questões relacionadas a duas hipóteses concorrentes sobre o ensino de leitura na infância. A primeira hipótese propõe que as crianças aprendem a ler melhor, de forma natural, construindo significados a partir da linguagem escrita,10 e que os componentes da leitura são aprendidos implicitamente. A segunda sugere que os componentes principais do processo de leitura precisam ser ensinados por meio de métodos explícitos, e que instrução sistemática sobre as relações entre letras e sons deve ser fornecida.

Questões-chave de pesquisa

Diante da prevalência e da persistência de problemas de leitura, a questão crítica é: quais são os métodos e abordagens mais efetivos para oferecer instrução em leitura a crianças pequenas de forma a torná-las leitoras eficientes?

Resultados de pesquisas recentes 

Em 1998, considerando a alta prevalência de dificuldades de leitura, o Congresso dos Estados Unidos determinou que fosse criada uma Comissão Nacional de Leitura (National Reading Panel) para rever a literatura existente de pesquisas sobre o tema, de forma a estabelecer quais os métodos mais efetivos para o ensino de leitura na infância. Dois anos mais tarde, a comissão apresentou seu relatório.11 Para que as crianças aprendam a ler, é preciso ensinar-lhes cinco elementos da leitura: 1) percepção fonêmica; 2) consciência fonológica; 3) fluência (capacidade de ler não apenas corretamente, mas rapidamente e com boa compreensão); 4) vocabulário; e 5) compreensão da leitura. A comissão relatou os métodos mais efetivos de ensino de cada um desses componentes; além disso, as evidências indicaram que as crianças aprendem melhor quando são ensinadas explicitamente de maneira organizada e sistemática. As descobertas da comissão constituem um marco no desenvolvimento da “educação baseada em evidências”, em que a instrução baseia-se em resultados de pesquisa com métodos rigorosos e não em informações até mesmo jocosas ou inclinações filosóficas. Estudos de intervenção confirmaram o impacto significativo desse tipo de instrução.12,13 Com o advento de técnicas que permitem captar imagens cerebrais, podemos agora avaliar o impacto da instrução sob uma perspectiva neurobiológica. Esses estudos de imagens cerebrais revelaram diferenças entre bons e maus leitores quanto aos padrões de ativação cerebral; bons leitores ativam três sistemas do hemisfério esquerdo, enquanto leitores que têm dificuldades apresentam menor ativação em duas dessas áreas localizadas na parte posterior do hemisfério esquerdo.14,15 Um aspecto importante é que esses estudos demonstram que, quando crianças pequenas são ensinadas com métodos “baseados em evidências”, os sistemas neurais de seus cérebros conseguem aproveitar a instrução, reorganizando-se de forma a se assemelharem aos padrões de ativação cerebral observados em crianças que são boas leitoras.16 Este estudo demonstrou, sem a menor dúvida, que o ensino faz diferença. As evidências recentes sugerem que a genética e o ambiente influenciam no desenvolvimento da dislexia.

Conclusões

A dislexia é tão prevalente quanto persistente. Quanto mais maduras, mais as crianças dependem da informação impressa para obter conhecimentos. Leitores principiantes aprendem mais com o que ouvem do que com o que vêem, mas por volta do sétimo ano, há uma inversão em favor da leitura, de modo que, no ensino médio, a maior parte do conhecimento e do vocabulário dos estudantes provém da leitura.18 As crianças aprendem cerca de três mil novas palavras por ano; isso significa que uma criança disléxica que não é identificada e ensinada com métodos eficazes, até o terceiro ano já está com um prejuízo de quase dez mil palavras com relação a seus pares,19,20 e precisa não apenas recuperar-se, mas manter-se no nível dos pares. Evidências convergentes indicam que a leitura é adquirida e que dificuldades críticas refletem um problema de processamento fonológico.21 Com base em evidências, novas abordagens para o ensino de leitura na infância estão surgindo. Estudos comportamentais e neurobiológicos indicam a efetividade dessas abordagens, particularmente nos primeiros anos escolares. Os estudos indicam que as dificuldades de leitura são multifatoriais, influenciadas tanto por fatores genéticos como pela experiência. Providenciar ajuda precoce pode evitar muitos dos problemas associados à dislexia que afetam a autoestima e o bem-estar emocional.

Implicações

A descoberta de que problemas de leitura persistem e de que abordagens baseadas em evidências são efetivas na superação dessas dificuldades em crianças pequenas tem implicações significativas para as políticas que determinam a educação na infância. Além disso, o conhecimento de que a capacidade de perceber e lidar com os sons da linguagem falada, bem como conhecer as letras, são fundamentais para o desenvolvimento de uma base para a leitura, significa que essas habilidades podem ser ensinadas a crianças pequenas, até mesmo antes de conseguirem ler. Há evidências de que essas habilidades para a leitura podem ser ensinadas para elas de formas ao mesmo tempo prazerosas e eficientes. Crianças que ingressam na escolarização formal preparadas para aprender a ler têm uma nítida vantagem em comparação com aquelas que não têm essas habilidades. Meninos e meninas oriundos de ambientes desfavorecidos e com menos exposição à linguagem frequentemente não têm amplo vocabulário ou os conhecimentos necessários para desenvolver habilidades adequadas de compreensão leitora, e correm maior risco de enfrentar dificuldades de leitura. Essas crianças beneficiam-se da exposição precoce ao desenvolvimento do vocabulário e à aprendizagem sobre o mundo que as cerca. A melhor forma de conseguir isso ainda é uma questão em aberto. O que não é mais questionável é que a preparação de crianças pequenas para que se tornem leitoras tem efeitos salutares sobre seu desenvolvimento socioemocional e sobre sua escolarização. 

Referências

  1. Morgan WP. A case of congenital word blindness. British Medical Journal 1896;1871:1378-1379.
  2. Shaywitz SE. Dyslexia. Scientific American 1996;275(5):98-104.
  3. Shaywitz S. Overcoming dyslexia: A new and complete science-based program for reading problems at any level. New York, NY: Alfred A. Knopf; 2003.
  4. Wendon L. Letterland. Enfield, NH: Letterland International Ltd.; 1992.
  5. Snow CE, Burns MS, Griffin P, eds. Preventing reading difficulties in young children. Washington, DC: National Academy Press; 1998. Disponible sur le site: http://books.nap.edu/books/030906418X/html/index.html. Page consultée le 26 mai 2006.
  6. Perie M, Grigg W, Donahue P. The nation's report card: Reading 2005. Washington, DC: U.S. Department of Education, National Center for Education Statistics, U.S. Government printing Office; 2005. NCES 2006-451. Disponible sur le site: http://nces.ed.gov/nationsreportcard/pdf/main2005/2006451.pdf. Page consultée le 26 mai 2006.
  7. Shaywitz SE, Shaywitz BA. Unlocking learning disabilities: The neurobiological basis. In: Cramer SC, Ellis W, eds. Learning disabilities: lifelong issues. Baltimore, Md: Paul H. Brookes Pub.; 1996:255-260.
  8. Francis DJ, Shaywitz SE, Stuebing KK, Shaywitz BA, Fletcher JM. Developmental lag versus deficit models of reading disability: A longitudinal, individual growth curves analysis. Journal of Educational Psychology 1996;88(1):3-17.
  9. Shaywitz BA, Holford TR, Holahan JM, Fletcher JM, Stuebing KK, Francis DJ, Shaywitz SE. A Matthew effect for IQ but not for reading: Results from a longitudinal study. Reading Research Quarterly 1995;30(4):894-906.
  10. Birsh JR. Multisensory teaching of basic language skills. 2nd ed. Baltimore, Md: Paul H. Brookes Pub.; 2005.
  11. National Reading Panel. Teaching children to read: An evidence-based assessment of the scientific research literature on reading and its implications for reading instruction. Washington, DC: U.S. Department of Health and Human Services, National Institute of Child Health and Human Development; 2000. Pub. No. 00-4754. Disponible sur le site: http://www.nichd.nih.gov/publications/nrp/upload/smallbook_pdf.pdf. Page consultée le 2 novembre 2007.
  12. Torgesen JK. The prevention of reading difficulties. Journal of School Psychology 2002;40(1):7-26.
  13. Lovett MW, Lacerenza L, Borden SL, Frijters JC, Steinbach KA, DePalma M. Components of effective remediation for developmental reading disabilitites: Combining phonological and strategy-based instruction to improve outcomes. Journal of Educational Psychology 2000;92(2):263-283.
  14. McCandliss BD, Cohen L, Dehaene S. The visual word form area: expertise for reading in the fusiform gyrus. Trends in Cognitive Sciences 2003;7(7):293-299.
  15. Shaywitz BA, Shaywitz SE, Pugh KR, Mencl WE, Fulbright RK, Skudlarski P, Constable RT, Marchione KE, Fletcher JM, Lyon GR, Gore JC. Disruption of posterior brain systems for reading in children with developmental dyslexia. Biological Psychiatry 2002;52(2):101-110.
  16. Shaywitz BA, Shaywitz SE, Blachman BA, Pugh KR, Fulbright RK, Skudlarski P, Mencl WE, Constable RT, Holahan JM, Marchione KE, Fletcher JM, Lyon GR, Gore JC. Development of left occipitotemporal  systems for skilled reading in children after a phonologically-based intervention. Biological Psychiatry 2004;55(9):926-933.
  17. Meng HY, Smith SD, Hager K, Held M, Liu J, Olson RK, Pennington BF, Defries JC, Gelernter J, O'Reilly-Pol T, Somlo S, Skudlarski P, Shaywitz SE, Shaywitz BA, Marchione K, Wang Y, Paramasivam M, Lo-Turco JJ, Page GP, Gruen JR. DCDC2 is associated with reading disability and modulates neuronal development in the brain. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America 2005;102(47):17053-17058.
  18. Sticht T, Beck L, Hauke R, Kleiman G, James J. Auding and reading: a developmental model. Alexandria, Va: Human Resources Research Organization; 1974.
  19. Just MA, Carpenter PA. The psychology of reading and language comprehension. Boston, Mass: Allyn and Bacon; 1987.
  20. Nagy WE, Herman PA. Breadth and depth of vocabulary knowledge: Implications for acquisition and instruction. In: McKeown MG, Curtis ME, eds. The nature of vocabulary acquisition. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates; 1987:19-35.
  21. Morris RD, Stuebing KK, Fletcher JM, Shaywitz SE, Lyon GR, Shankweiler DP, Katz L, Francis DJ, Shaywitz BA. Subtypes of reading disability: Variability around a phonological core. Journal of Educational Psychology 1998;90(3):347-373.

Para citar este artigo:

Shaywitz SE, Shaywitz BA. Dislexia precoce e seu impacto sobre o desenvolvimento socioemocional inicial. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/disturbios-de-aprendizagem/segundo-especialistas/dislexia-precoce-e-seu-impacto-sobre-o. Publicado: Março 2006 (Inglês). Consultado em 19 de abril de 2024.

Texto copiado para a área de transferência ✓