A origem das dificuldades nas relações entre pares na primeira infância e seu impacto sobre a adaptação e o desenvolvimento psicossocial das crianças
Michel Boivin, PhD, Canada Chair on Children’s Social Development
GRIP, École de psychologie & Université Laval, Canadá
(Inglês). Tradução: outubro 2011
Introdução
Acredita-se que as relações entre pares desempenham um papel importante no desenvolvimento das crianças.1,2,3 Elas oferecem oportunidades únicas para a familiarização com normas e processos sociais envolvidos nas relações interpessoais e para a aprendizagem de novas habilidades sociais. Oferecem, ainda, contextos nos quais as capacidades de autocontrole podem ser experimentadas e refinadas. As relações entre pares na infância são também multifacetadas: as crianças vivenciam interações entre pares por meio de sua participação em atividades de grupo, bem como em suas relações diádicas com amigos.2 Considera-se que essas diversas facetas das experiências com pares propiciam oportunidades de desenvolvimento, próprias de cada idade, para a construção do selfa, com a experiência em grupos de pares aumentando progressivamente de importância e culminando na média infância, antes de dar lugar às amizades como característica central na fase final da infância e na adolescência.3
Problemas
Infelizmente, nem sempre as relações entre pares são benéficas para as crianças: entre 5% e 10% das crianças vivenciam dificuldades crônicas de relacionamento entre pares, tais como rejeição4 ou assédio5 dos parceiros. Nos últimos 20 anos, tem havido inúmeras pesquisas visando à compreensão da natureza, do significado e do impacto de problemas de relacionamento entre pares.3 A maior parte desse esforço de pesquisa concentrou-se em crianças de idade escolar. No entanto, cada vez mais crianças são expostas a outros pares cedo na sua vida, por meio da frequência a creches.6 As relações entre pares nos primeiros anos de vida são, portanto, muito relevantes para questões de políticas sociais e devem ser objeto de contínua atenção.
Questões-chave de pesquisa
Há pelo menos quatro questões básicas relevantes no estudo de relações precoces entre pares: 1) Quais são os marcos de desenvolvimento de interações e relações entre pares na infância? 2) Em que idade as crianças começam a ter dificuldades de relacionamento com seus pares? 3) Que comportamentos sociais são responsáveis por dificuldades nas relações entre pares na infância? 4) Quais são as consequências de dificuldades nessas relações?
Resultados de pesquisa
Marcos de desenvolvimento de interações e relações entre pares na infância: ao final do primeiro ano de vida, a maioria dos bebês compartilha atividades com seus pares, principalmente em torno de objetos. Ao final do segundo ano, com a locomoção mais eficiente e o desenvolvimento da linguagem, as crianças são capazes de coordenar seu comportamento em brincadeiras com parceiros; imitam-se mutuamente e começam a alternar papéis nas brincadeiras.7,8 Entre os três e os cinco anos, há um aumento sistemático de comportamentos pró-sociais e de brincadeiras de faz-de-conta, bem como uma redução de comportamentos agressivos, refletindo a maior capacidade das crianças de adotar a perspectiva do parceiro de brincadeira.9,8 Essas habilidades sócio-interativas emergentes constituem as bases das primeiras relações entre pares, que se manifestam inicialmente na preferência por parceiros específicos.10,8 Essas preferências iniciais levarão gradualmente às amizades pré-escolares, que estão baseadas principalmente em trocas concretas e atividades lúdicas recíprocas. Em contextos de creche, essas amizades tornam-se progressivamente mais segregadas em termos de sexo e imersas em redes afiliativas.11,12,13 Grupos informais e multietários de brincadeira formam-se também entre vizinhos.14,15
Em que idade as crianças começam a ter dificuldades de relacionamento com seus pares? Crianças pré-escolares constroem gradualmente suas percepções sobre seus pares e amigos. Por volta dos quatro anos, pelo menos, identificam, de maneira confiável, seus melhores amigos, os parceiros de quem gostam e aqueles de quem não gostam. A combinação dessas percepções revela uma estrutura coerente e consistente de status no grupo, com algumas crianças menos queridas e percebidas de forma negativa pelo grupo de pares.16,17,10 Essa forma de rejeição pelos pares pode levar a várias manifestações de comportamentos negativos dirigidos à criança, tais como controlar e dominar uma criança, provocação excessiva e assédio ou vitimização pelos pares.18,19 Assédio pelos pares refere-se ao fato de uma criança ser exposta, repetidamente e em várias ocasiões, a tratamento negativo por parte de uma ou mais crianças.20 Isto tem sido mais documentado na média infância, mas há evidências de que essas dificuldades também existem na fase pré-escolar.21,22,23
Que fatores são responsáveis pelas dificuldades de relacionamento entre pares na infância? Características físicas alteradas, tais como problemas de linguagem, falta de jeito ou incapacidade física podem criar dificuldades de relacionamento entre pares. No entanto, os atributos comportamentais das crianças têm sido mais sistematicamente identificados como as principais fontes dessas dificuldades. As crianças que vivenciam dificuldades de relacionamento com seus pares tendem a ser mais agressivas, hiperativas e negativistas, mas também mais retraídas e menos sociáveis.22,24,25 Esses comportamentos poderiam ser determinantes proximais, bem como consequências, de suas dificuldades de relacionamento na primeira infância (ver abaixo). O comportamento agressivo é o correlato e o determinante proximal mais comumente citado de rejeição entre pares em contextos escolares.26,27,3 Entretanto, algumas crianças agressivas desfrutam de um status social bastante alto,28 especialmente se as normas do grupo aceitarem ou forem neutras em relação a comportamentos agressivos.29 Isso é mais provável entre crianças pré-escolares, porque as formas instrumentais e pró-ativas de comportamento agressivo podem estar positivamente relacionadas com popularidade.30 De fato, crianças dessa idade, especialmente meninos,31 frequentemente utilizam meios agressivos para conseguir um status mais alto na estrutura social. Um fenômeno relacionado é que pré-escolares agressivos tendem a associar-se ou a fazer amizade uns com os outros,32,33 uma tendência que poderia reforçar comportamentos agressivos como forma de atingir metas sociais.34,35 Finalmente, crianças tímidas e retraídas também tendem a vivenciar dificuldades nas relações com seus pares.36 Neste caso, no entanto, os problemas de relacionamento tendem a ocorrer mais tarde, porque essas formas de reticência social são menos notáveis e menos óbvias para crianças pré-escolares.37
Quais são as consequências de dificuldades nas relações entre pares na infância? Há um consenso nessa área de que crianças que vivenciam dificuldades no relacionamento com seus pares correm risco de uma diversidade de problemas futuros de adaptação, entre os quais estão evasão escolar, delinquência e problemas emocionais.3,38 No entanto, os processos de desenvolvimento que conduzem a esses problemas posteriores ainda são questões em aberto: as dificuldades nas relações entre pares na infância estariam realmente causando esses problemas de adaptação, ou eles resultam de características persistentes da criança?39 Verificou-se que dificuldades duradouras nas relações entre pares na infância prevêm problemas interiores como solidão, depressão e ansiedade, bem como problemas de saúde e na escola.38,40,3 A evidência quanto a crianças pré-escolares é mais limitada, mas aponta na mesma direção.21,22,41 No entanto, não está claro se esses problemas nas relações entre pares na infância terão consequências de longo prazo. A rejeição pelos pares no jardim de infância pode também fortalecer comportamentos agressivos reativos entre crianças que apresentam uma predisposição para a agressão, possivelmente porque a experiência de rejeição pelos pares induz e promove atribuições e expectativas hostis a respeito de situações sociais.42 Como já foi afirmado anteriormente, a vinculação recíproca entre crianças agressivas também pode reforçar seus comportamentos agressivos no decorrer da primeira infância. De fato, interações entre pares de crianças agressivas nos anos pré-escolares são as vezes ocasião para trocas coercitivas que podem, sob certas condições (por exemplo, atitude submissa da criança coagida, tolerância dos adultos e dos pares em relação à agressão), funcionar como oportunidades de aprendizagem e treinamento de comportamentos agressivos.43 Esse processo, denominado “treino de desvios”, já recebeu sustentação empírica substancial.44 A evidência preliminar sugere que a quantidade de tempo na creche associa-se a taxas mais altas de agressão,45,6 e os processos de treino de desvios poderiam ser parcialmente responsáveis por essa associação.33,46 Finalmente, deve-se notar também que as relações de amizade (por exemplo, vínculo com crianças agressivas;34 ter um amigo que protege47) também podem desempenhar um papel importante de proteção em relação a experiências negativas entre pares e o impacto dessas experiências. Esses processos possivelmente operam também na pré-escola.
Conclusões
As vidas sociais de crianças pré-escolares são bastante elaboradas e refinadas, na medida em que elas vivenciam uma variedade de experiências positivas e negativas com seus pares no decorrer desses primeiros anos de vida. Diferenças individuais de adaptação em relação aos pares podem ser percebidas assim que os grupos são formados. Pelo menos por volta dos quatro anos, uma proporção significativa de crianças enfrentará dificuldades no relacionamento com seus pares, tais como rejeição e assédio pelos seus pares, e essas experiências negativas poderiam ter um impacto sobre sua adaptação e seu desenvolvimento socioemocional. A dinâmica de desenvolvimento dessas dificuldades é multifacetada e envolve associações bidirecionais e diferenciadas com as tendências comportamentais das crianças. Entre estas, comportamentos sociais inadequados, como a agressão, estão claramente envolvidos, mas de formas complexas. Não apenas são determinantes proximais significativos das dificuldades de relacionamento entre pares, mas também estão imersos em uma matriz social emergente que pode manter e promover tendências agressivas. A partir do jardim de infância, comportamentos agressivos hostis aparecem associados à rejeição pelos pares, e talvez amplificados por esta. No entanto, a maioria das crianças agressivas não é marginalizada, tendendo a associar-se umas com as outras nos anos pré-escolares. Isto poderia resultar em algumas formas de treino de desvios.
Implicações para perspectivas de políticas e serviços
Não está claro se as relações positivas e negativas entre pares na infância têm benefícios ou custos de longo prazo. No entanto, diante da evidência revista aqui, é óbvio que esta questão deveria ser alvo de preocupação de formuladores de políticas e de provedores de serviços. Sem dúvida, muitos problemas de adaptação podem ser remetidos a problemas de relacionamento entre pares na infância. O desafio para a comunidade de pesquisa é entender mais claramente a origem, o desenvolvimento e o impacto de relações saudáveis e problemáticas entre pares na primeira infância. Para isso são essenciais estudos prospectivos do desenvolvimento inicial. Essas questões fundamentais tornam-se ainda mais importantes já que cada vez mais crianças vivenciam desde cedo relações entre pares por meio de uma variedade de programas públicos e privados promotores de cuidados na infância. Esses serviços também intervêm mais cedo do que nunca na vida das crianças. É importante avaliar de que maneira os vários programas de cuidados podem ou não promover relações entre pares saudáveis. Esses esforços de pesquisa devem também contribuir para o planejamento e a avaliação de programas adequados e eficientes de prevenção. Por exemplo, é evidente atualmente que não se devem agrupar, para fins de tratamento, crianças pequenas que apresentam comportamentos agressivos.
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Nota:
aNT: Não há uma tradução consensual para self na literatura brasileira da área. O sentido mais aproximado é o “si mesmo” – no contexto, a construção de sua identidade íntima.
Para citar este artigo:
Boivin M. A origem das dificuldades nas relações entre pares na primeira infância e seu impacto sobre a adaptação e o desenvolvimento psicossocial das crianças. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Boivin M, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/relacoes-entre-pares/segundo-especialistas/origem-das-dificuldades-nas-relacoes-entre-pares-na. Publicado: Março 2005 (Inglês). Consultado em 4 de outubro de 2024.
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