Resiliência nos primeiros anos de vida e seu impacto sobre o desenvolvimento da criança: Comentários sobre Luthar e Sameroff


The Stone Center, Wellesley College, EUA
(Inglês). Tradução: junho 2011

Versão em PDF

Introdução

Há várias décadas, o estudo da resiliência vem ocupando lugar de destaque em nossos esforços para compreender a relação entre adversidade, desenvolvimento e adaptação.1,2 Os trabalhos desta coleção abordam a forma como o estudo da resiliência se apresenta em uma nova e conflituada era. Apesar da opinião de críticos que alardeiam que o conceito de resiliência deve ser abandonado, por considerá-lo redundante, tautológico e intelectualmente estático,3,4 outros profissionais, entre os quais os autores citados neste artigo, apontam o imenso potencial da pesquisa sobre resiliência para subsidiar a prática e a pesquisa em diversos níveis de análise.5-7

Luthar e Sameroff fazem observações valiosas e oportunas a respeito das pesquisas existentes sobre a resiliência e suas aplicações para os prestadores de serviços interessados em promover resultados positivos para todas as crianças. Ambos os autores destacam os múltiplos aspectos e a natureza multidimensional da resiliência como conceito que descreve a adaptação “melhor do que esperada” em contextos de adversidade. Neste artigo, faço uma revisão das idéias centrais apresentadas por esses autores, ofereço sugestões para ampliar e refinar essas ideias e apresento sugestões genéricas para futuras pesquisas e práticas.

Pesquisa e conclusões

O trabalho de Sameroff aborda a necessidade de dar maior clareza ao conceito de resiliência. O autor identifica áreas-chave de interesse fundamentadas na necessidade de demonstrar que resiliência difere de competência – isto é, a adaptação positiva na ausência da exposição à adversidade – e que surge de transações dentro e entre diferentes níveis de análise, e que é  um constructo dinâmico e multidimensional. Fica evidente a atenção dos autores à resiliência como processo de desenvolvimento e à necessidade de defini-la e avaliá-la a partir de considerações contextuais. Como Luthar observa corretamente, a questão-chave para os pesquisadores de resiliência é compreender como “crianças em condições de alto risco funcionam relativamente bem, enquanto outras sucumbem.”

Uma situação mais complicada emerge quando reconhecemos, como Sameroff, que nossa definição de “relativamente bem” reflete noções culturalmente incorporadas de adaptação positiva e negativa.8,9 De fato, ambos os autores destacam a natureza multidimensional e dinâmica da resiliência. Luthar observa que as crianças podem demonstrar competência em um domínio, mas não em outro, ou em determinado momento, mas não em outro. Sameroff vai além, enfatizando que comportamentos considerados adaptativos em determinado contexto sociocultural podem revelar-se não adaptativos em outros. Seu argumento é consistente com constatações recentes, que demonstram que fatores e processos específicos podem operar de formas diferentes em função da exposição ao risco.10 No entanto, sua afirmação de que o comportamento antissocial pode revelar resiliência em contextos de alto risco contradiz o fato de que a adaptação positiva é mais do que mera sobrevivência; um aspecto-chave da resiliência está centrado no envolvimento positivo com o mundo interpessoal. Com o reconhecimento crescente de que resiliência é um processo multidimensional, a atenção deve ser deslocada para discutir se os diferentes aspectos da adaptação positiva – por exemplo, resiliência, competência – estão relacionados entre si ao longo do tempo, como ocorre essa relação e em que contexto ocorre .11

Assim como a resiliência deve ser avaliada a partir de características culturais e contextuais específicas, os estudos atuais sobre resiliência também devem ser ampliados para além de um único nível de análise, na direção das interações e transações dentro e entre os múltiplos sistemas de desenvolvimento que moldam os caminhos para perto ou para longe da competência frente à adversidade – isto é, a resiliência. Para tanto, Luthar destaca a crescente percepção das influências biológicas sobre a resiliência. Seu trabalho reflete apelos recentes por maior atenção aos correlatos biológicos ou de fatores contributivos para a resiliência.12,13 Além disso, no entanto, a atenção deve ser direcionada para as interações entre influências biológicas e psicossociais sobre a adaptação, às quais Luthar se refere quando menciona a pesquisa de Caspi sobre interações genético-ambientais.14,15

A teoria e as pesquisas contemporâneas sobre resiliência desviaram o foco do estudo de características individuais para concentrar-se nos processos de desenvolvimento que geram resultados positivos.16-18 Com essa finalidade, os autores enfatizam o conceito de resiliência como um processo dinâmico de desenvolvimento, e não como uma característica estática. Luthar enfatiza esse aspecto de maneira muito clara, ao endossar expressões como “adaptação resiliente” ou “padrões resilientes”, no lugar de “indivíduos resilientes”. Sameroff destaca um pressuposto central de uma perspectiva desenvolvimental ao afirmar que a adaptação contemporânea só pode ser compreendida levando em conta tanto as experiências atuais quanto as passadas. Entretanto, em outros pontos, o autor parece concentrar-se mais na resiliência como uma característica ou uma capacidade, e não como um processo de desenvolvimento, como no momento em que discute a necessidade de “aumentar a resiliência de crianças menos competentes”. Juntos, embora em graus distintos, esses pesquisadores apoiam a afirmação de que a resiliência reflete a operação de processos adaptativos normativos que permitem que as crianças alcancem resultados positivos apesar da exposição a adversidades incontestáveis. O problema dessa definição é que os mesmos processos que geram a competência em circunstâncias favoráveis constituem a base dos processos de resiliência em contextos adversos. É por essa razão que os estudos de adaptação positiva (e de não adaptação) em múltiplos contextos informam-se e definem-se mutuamente.

Implicações para políticas e perspectivas de serviços

Embora alguns tenham questionado o mérito da resiliência como um conceito desenvolvimental distinto, a literatura continua a demonstrar que a resiliência reflete um processo de desenvolvimento que difere do ajustamento positivo na ausência de exposição à adversidade – isto é, competência.10,19 Além disso, esforços recentes para identificar transações dentro e através de diversos níveis de análise têm revelado novas e estimulantes fontes para explicar processos de resiliência. Como nossa compreensão sobre a resiliência avança em direção a uma perspectiva mais dinâmica, transacional e desenvolvimentista, são muitas as implicações para futuras pesquisas e práticas.

Esses trabalhos reforçam a atenção dada a estudos desenvolvimentistas, contextuais e de múltiplos níveis que entendem resiliência como um processo dinâmico. Deste ponto de vista, a resiliência não se encontra nem no indivíduo, nem no meio ambiente, mas sim nas interações entre eles. Como discutido por Gottlieb, essa visão relacional de causalidade reforça a atenção para as transações entre e dentro de sistemas de desenvolvimento que promovem ou prejudicam os processos de resiliência.20 Para este fim, a estrutura integradora da psicopatologia do desenvolvimento é muito promissora para fundamentar futuros estudos de resiliência dentro de uma visão que adota intrinsecamente vários níveis de desenvolvimento, que podem incorporar a pesquisa dentro de vários sistemas biológicos e psicossociais, e através deles.17 Além de interligar a pesquisa sobre resiliência e a psicopatologia através de múltiplos contextos e sistemas, a psicopatologia do desenvolvimento tem a particular utilidade de incentivar os esforços translacionais entre a pesquisa e a prática.21,22

Resiliência é um processo de desenvolvimento que reflete a operação normativa de sistemas básicos de adaptação no contexto de adversidades atuais ou passadas.16 Portanto, os esforços para promover a adaptação positiva de jovens em situação de risco devem mover-se dos modelos tradicionais de provimento de habilidades ou de redução do risco, para um modelo que sustente e atenue sistemas centrais motivacionais, regulatórios, biológicos e de apego subjacentes tanto a vias de competência, quanto a vias patológicas.23 Os programas de intervenção mais eficazes reduzirão fatores associados a distúrbios – isto é, riscos –, proverão recursos associadas à adaptação positiva – isto é, habilidades –, e darão sustentação e apoio à operação de sistemas adaptativos nucleares por meio de aplicações multifacetadas. A sugestão de Luthar de que intervenções bem-sucedidas fortalecerão sistemas relacionais nucleares por meio do foco na qualidade e na consistência alcançados no primeiro ambiente inicial de cuidados é apenas um exemplo desse tipo de intervenções orientadas para processos.

A resiliência e os processos dela decorrentes não são estáticos. Como observou Sameroff, processos de proteção variam de forma previsível ao longo do tempo e conforme o contexto. Portanto, as próprias intervenções devem ser dinâmicas, flexíveis e culturalmente específicas para assegurar que sejam integradas à estrutura da comunidade-alvo. A aplicação eficaz da pesquisa sobre resiliência deve começar pela comunidade, deve visar sistemas múltiplos de desenvolvimento e deve promover a participação e o aumento do poder da comunidade.5,24 Por fim, deve haver uma tradução reversa de tal forma que a prática possa subsidiar a teoria e a pesquisa da resiliência. Estudos que demonstraram mudanças em processos de causas hipotéticas em função da intervenção e das mudanças correspondentes em resultados previstos fornecem evidências convincentes para teorias sobre a mudança e a continuidade do desenvolvimento.21 O tempo dirá se, e como, o estudo da resiliência fará a negociação entre o duplo desafio de clareza conceitual e aplicações acessíveis. Os trabalhos aqui analisados ajudarão a responder a esses desafios.

Referências

  1. Luthar SS. Resilience in development: A synthesis of research across five decades. In: Cicchetti D, Cohen D, eds. Developmental psychopathology: Risk, disorder, and adaptation. New York, NY: John Wiley and Sons; 2006:739-795.
  2. Cicchetti D, Garmezy N, eds. Milestones in the development of resilience. New York, NY: Cambridge University Press; 1993. Development and psychopathology, special issue; vol 5.
  3. Tarter RE, Vanyukov M. Re-visiting the validity of the construct of resilience. In: Glantz MD, Johnson JL, eds. Resilience and development: Positive life adaptations. Dordrecht, Netherlands: Kluwer Academic Publishers; 1999:85-100.
  4. Kaplan HB. Toward an understanding of resilience: A critical review of definitions and models. In: Glantz MD, Johnson JL, eds. Resilience and development: Positive life adaptations. Dordrecht, Netherlands: Kluwer Academic Publishers; 1999:17-83.
  5. Yates TM, Masten AS. Fostering the future: Resilience theory and the practice of positive psychology. In: Linley PA, Joseph S, eds. Positive psychology in practice. Hoboken, NJ: John Wiley and Sons; 2004:521-539.
  6. Luthar SS, Cicchetti D. The construct of resilience: Implications for interventions and social policies. Development and Psychopathology 2000;12(4):857-885.
  7. Masten AS, Powell JL. A resilience framework for research, policy, and practice. In: Luthar SS, ed. Resilience and vulnerability: Adaptation in the context of childhood adversities. New York, NY: Cambridge University Press; 2003:1-25.
  8. Ungar M. A constructionist discourse on resilience: Multiple contexts, multiple realities among at-risk children and youth. Youth and Society 2004;35(3):341-365.
  9. Cowen EL. The enhancement of psychological wellness: Challenges and opportunities. American Journal of Community Psychology 1994;22(2):149-179.
  10. Cicchetti D, Rogosch FA. The role of self-organization in the promotion of resilience in maltreated children. Development and Psychopathology 1997;9(4):797-815.
  11. Masten AS, Burt KB, Roisman GI, Obradovic J, Long JD, Tellegen A. Resources and resilience in the transition to adulthood: Continuity and change. Development and Psychopathology 2004;16(4):1071-1094.
  12. Charney DS. Psychobiological and vulnerability: Implications for successful adaptation to extreme stress. American Journal of Psychiatry 2004;161(2):195-216.
  13. Curtis WJ, Cicchetti D. Moving research on resilience into the 21st century: Theoretical and methodological considerations in examining the biological contributors to resilience. Development and Psychopathology 2003;15(3):773-810.
  14. Caspi A, McClay J, Moffitt TE, Mill J, Martin J, Craig IW, Taylor A, Poulton R. Role of genotype in the cycle of violence in maltreated children. Science 2002;297(5582):851-854.
  15. Caspi A, Sugden K, Moffitt TE, Taylor A, Craig IW, Harrington H, McClay J, Mill J, Martin J, Braithwaite A, Poulton R. Influence of life stress on depression: Moderation by a polymorphism in the 5-HTT gene. Science 2003;301(5631):386-389.
  16. Masten AS. Ordinary magic: Resilience processes in development. American Psychologist 2001;56(3):227-238.
  17. Yates TM, Egeland B, Sroufe LA. Rethinking resilience: A developmental process perspective. In: Luthar SS, ed. Resilience and vulnerability: Adaptation in the context of childhood adversities. New York, NY: Cambridge University Press; 2003:243-266.
  18. Egeland B, Carlson E, Sroufe LA. Resilience as process. Development and Psychopathology 1993;5(4):517-528.
  19. Luthar SS, Cicchetti D, Becker B. The construct of resilience: A critical evaluation and guidelines for future work. Child Development 2000;71(3):543-562.
  20. Gottlieb G, Halpern CT. A relational view of causality in normal and abnormal development. Development and Psychopathology 2002;14(3):421-435.
  21. Cicchetti D, Hinshaw SP, eds. Prevention and intervention science: Contributions to developmental theory. New York, NY: Cambridge University Press; 2002. Development and psychopathology, special issue; vol 14.
  22. Cicchetti D, Toth SL, eds. Developmental approaches to prevention and intervention. Rochester, NY: University of Rochester Press; 1999. Rochester Symposium on Developmental Psychopathology; vol. 9.
  23. Yates TM, Masten AS. The promise of resilience research for practice and policy. In: Newman T, ed. What works? Building resilience: Effective strategies for child care services. Ilford, England: Barnado’s; 2004:6-15.
  24. Cicchetti D, Rappaport J, Sandler I, Weissberg RP, eds. The promotion of wellness in children and adolescents. Washington, DC: CWLA Press; 2000.

Para citar este artigo:

Yates TMF. Resiliência nos primeiros anos de vida e seu impacto sobre o desenvolvimento da criança: Comentários sobre Luthar e Sameroff. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Masten AS, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/resiliencia/segundo-especialistas/resiliencia-nos-primeiros-anos-de-vida-e-seu-impacto-sobre-o. Publicado: Fevereiro 2006 (Inglês). Consultado em 19 de abril de 2024.

Texto copiado para a área de transferência ✓