Conhecimento numérico na primeira infância


University of Hawaii, EUA
(Inglês). Tradução: fevereiro 2013

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Introdução

Nos últimos anos, o número de pesquisas sobre o conhecimento numérico de crianças pequenas aumentou rapidamente. Esses estudos abrangem uma ampla gama de capacidades e conceitos – desde a competência do bebê para discriminar entre conjuntos que contêm quantidades diferentes de elementos,1,2 até a compreensão dos nomes que representam os números3,4 e a contagem5,6,7 no caso de crianças em idade pré-escolar, além de seu entendimento sobre a relação inversa entre a adição e a subtração.8,9

Do que se trata

A pesquisa sobre o conhecimento numérico de crianças pequenas fornece uma base importante para formular padrões para a educação na primeira infância10 e planejar currículos de Matemática adequados a essa fase da vida da criança.11,12,13 Além disso, o conhecimento matemático que as crianças adquirem antes de iniciar a educação formal tem ramificações importantes para o desempenho escolar e as futuras opções de carreira.14 Uma análise dos preditores de realização acadêmica, baseada em seis conjuntos de dados longitudinais, mostrou que as habilidades matemáticas da criança no momento do ingresso na escola permitiam prever o desempenho escolar subsequente de maneira ainda mais enfática do que as habilidades de leitura e as habilidades relacionadas à atenção e ao aspecto socioemocional.15

Problemas

Fundamentalmente, as operações com números exigem a compreensão do número como representação de um tipo particular de grandeza. De forma análoga, para compreender de que modo se desenvolvem as habilidades de operações com números na primeira infância, é preciso saber como a criança passa a compreender as relações quantitativas básicas existentes entre os números e outros tipos de quantidades, e de que modo compreende os aspectos dos números que os distinguem de outros tipos de quantidades.

Contexto de pesquisa

A clássica pesquisa de Piaget sobre o desenvolvimento lógico-matemático investigou a compreensão da criança sobre as propriedades gerais de quantidade – tais como seriação e conservação das relações de equivalência sob certos tipos de transformações.16 No entanto, Piaget acreditava que esse tipo de conhecimento só surgiria quando a criança adquirisse o pensamento operatório concreto, por volta dos 5-7 anos de idade. Posteriormente, outros pesquisadores17 procuraram demonstrar que crianças mais novas tinham um conhecimento numérico consideravelmente maior do que acreditava Piaget; e a pesquisa atual fornece evidências de uma ampla gama de habilidades iniciais em operações com números.18 

Questões-chave de pesquisa

Uma alegação de peso, porém polêmica, presente na literatura atual sobre as capacidades numéricas iniciais, sustenta que o cérebro é “programado” para operar com números.19,20 Essa ideia é frequentemente apoiada por evidências de discriminação numérica em bebês e em animais.21 No entanto, os críticos do inatismo – doutrina filosófica que afirma que a mente nasce com ideias/conhecimentos – destacam a difusão de mudanças resultantes do desenvolvimento no raciocínio numérico,22 a lenta diferenciação dos números em relação a outras dimensões quantitativas23 e a natureza contextualizada do conhecimento numérico inicial.24 Além disso, evidências cumulativas indicam que a linguagem24 e outros produtos e práticas culturais25,26 contribuem de maneira considerável para a aquisição do conhecimento numérico pelas crianças pequenas. 

Resultados de pesquisas recentes

Conhecimento numérico nos primeiros meses de vida

Uma das áreas mais ativas da pesquisa atual diz respeito às habilidades numéricas dos bebês. Kobayashi, Hiraki e Hasegawa1 utilizaram as discrepâncias entre a informação visual e a informação auditiva sobre o número de itens presentes em uma coleção para testar a discriminação numérica em bebês de 6 meses de idade. Os autores mostraram às crianças objetos que produziam um som quando caíam sobre uma superfície e, a seguir, deixavam cair dois ou três desses objetos atrás de uma tela, de tal modo que os bebês ouvissem o som de cada objeto, mas não pudessem vê-los.   A seguir, removeram a tela para mostrar ou o número correto de objetos ou um número diferente (3, na presença de 2 sons, e vice-versa). Os bebês olhavam durante um tempo maior para os objetos quando o número de itens não correspondia ao número de sons, o que indica que eram capazes de distinguir entre dois e três objetos. Outra pesquisa indica que bebês de 6 meses de idade também conseguem discriminar entre quantidades numéricas maiores, desde que a razão numérica entre elas seja grande.  Bebês de 6 meses de idade são capazes de discriminar entre 4 e 8 elementos27 e mesmo entre 16 e 32.28 No entanto, quando o contraste é menor (8 e 12, por exemplo), os bebês nessa faixa etária não conseguem fazer a distinção,29 mas os mais velhos sim.2 Ou seja: à medida que sua idade aumenta, os bebês tornam-se capazes de fazer discriminações numéricas mais precisas . 

O conhecimento da criança pequena sobre as relações numéricas

Tendo em vista que os números representam um tipo de grandeza, um aspecto fundamental do conhecimento numérico diz respeito às relações de igualdade, inferioridade e superioridade entre quantidades numéricas.30 Surpreendentemente, à luz das constatações relacionadas a bebês, o fato de crianças em idade pré-escolar compararem numericamente os conjuntos, principalmente quando isso envolve ignorar outras diferenças entre tais conjuntos, é considerado um feito significativo de desenvolvimento.

Por exemplo, Mix31 estudou a capacidade de crianças de 3 anos de idade para combinar numericamente um conjunto de 2, 3 ou 4 pontos pretos. Essa tarefa era fácil quando os objetos oferecidos às crianças eram semelhantes, em termos perceptuais, aos pontos aos quais deveriam corresponder – por exemplo, discos pretos, ou conchas vermelhas aproximadamente do mesmo tamanho dos pontos. Entretanto, o desempenho das crianças foi menor quando os objetos manipulados eram diferentes em termos perceptuais – por exemplo: estatuetas de leões ou objetos heterogêneos. 

Muldoon, Lewis, e Francis7 verificaram a capacidade de crianças de 4 anos de idade para avaliar a relação numérica entre duas fileiras de blocos – contendo de 6 a 9 itens por fileira – diante de pistas errôneas em relação ao comprimento das fileiras – isto é, quando duas fileiras de comprimentos diferentes continham o mesmo número de itens, ou duas fileiras de igual comprimento continham números diferentes de itens. Para comparar as fileiras, a maioria das crianças baseou-se em comparações de comprimento, e não na contagem dos itens. Entretanto, um procedimento de treinamento em três sessões conduziu a melhor desempenho, particularmente no caso de crianças que, como parte do treinamento, foram solicitadas a explicar por que as fileiras eram de fato numericamente iguais ou desiguais (como indicado pelo experimentador). 

Lacunas de pesquisa

Embora dados experimentais relativos às habilidades iniciais em operações com números venham se acumulando rapidamente, a ausência de explicações teóricas que incorporem toda a gama de resultados empíricos limita nossa compreensão sobre o modo como as diversas constatações já obtidas complementam-se e sobre as questões que permanecem sem solução. Na literatura relacionada a bebês, por exemplo, as explicações contraditórias das capacidades numéricas iniciais geraram muitas pesquisas nos últimos anos. Mesmo assim, os resultados alcançados não reduziram as controvérsias teóricas. Ao apresentar conclusões teóricas, os pesquisadores devem ter conhecimento de todo o corpus de descobertas, e suas teorias devem ser formuladas de maneira suficientemente precisa para que seja possível diferenciá-las empiricamente.

Além disso, é preciso que os pesquisadores reúnam informações mais precisas sobre os processos que favorecem o desenvolvimento inicial de habilidades em operações com números. Sabemos que o desempenho de crianças pequenas é afetado por variáveis contextuais que vão desde cultura e classe social32 até padrões de interação pais-filho33,34 e professor-aluno35. Até o momento, porém, dispomos somente de poucas informações, a maioria delas proveniente de estudos experimentais de formação7,25,36 referentes ao modo como experiências específicas alteram o pensamento numérico da criança. Seria de grande utilidade a realização de pesquisas que fornecessem dados convergentes sobre (a) experiências numéricas cotidianas de crianças pequenas e de que forma essas experiências variam com a idade da criança, e (b) efeitos experimentais dos tipos de experiências sobre o pensamento infantil. 

Conclusões

As pesquisas disponíveis sobre o desenvolvimento do conhecimento numérico em crianças pequenas apoiam quatro generalizações que têm implicações importantes para políticas e práticas.  Em primeiro lugar, o desenvolvimento das habilidades numéricas é multifacetado.  As operações com números na primeira infância englobam muito mais do que contar e conhecer alguns fatos elementares de aritmética.  Em segundo lugar, independentemente da capacidade numérica evidenciada até mesmo por bebês, as mudanças associadas à idade são generalizadas. Nas comparações por grupos etários, crianças mais velhas quase sempre têm melhor desempenho. Em terceiro lugar, a variabilidade é generalizada. O desempenho individual da criança varia quando realiza diferentes tarefas numéricas,37 da mesma forma que varia seu comprometimento com tipos particulares de raciocínio numérico em diferentes contextos,3 e ainda variam as respostas de uma tentativa para outra em uma única tarefa.5,38 Por fim, os progressos da criança na aquisição do conhecimento numérico são altamente maleáveis: são influenciados por atividades informais como jogos de tabuleiro,25 por atividades experimentais planejadas para esclarecer relações numéricas,7,36 e por variações nos modos como pais33,34 e professores35 falam sobre números com as crianças.

Implicações

Uma contribuição importante da pesquisa sobre as operações com números na primeira infância para políticas e práticas é informar os objetivos estabelecidos para a instrução inicial da Matemática. Da mesma forma que o desenvolvimento de habilidades numéricas na primeira infância é multifacetado, os objetivos de programas instrucionais para a primeira infância devem ser muito mais amplos do que apenas reforçar as habilidades infantis para contar ou ensiná-las alguns fatos aritméticos básicos. Números, como outros tipos de grandezas, caracterizam-se por relações de igualdade e desigualdade. Ao mesmo tempo, diferem de outros tipos de grandezas na medida em que se baseiam no fracionamento de uma quantidade total em unidades. As atividades educacionais que estimulam a criança a pensar sobre as relações entre quantidades e efeitos de transformações – tais como repartir, agrupar ou rearranjar essas relações – podem ser úteis para o desenvolvimento da compreensão que as crianças têm sobre essas ideias. A variabilidade e a maleabilidade do pensamento numérico da criança pequena indicam o potencial de contribuição substancial dos programas educacionais destinados à primeira infância para o crescente conhecimento da criança sobre números.

Referências

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Para citar este artigo:

Sophian C. Conhecimento numérico na primeira infância. Em: Tremblay RE, Boivin M, Peters RDeV, eds. Bisanz J, ed. tema. Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância [on-line]. https://www.enciclopedia-crianca.com/operacoes-com-numeros/segundo-especialistas/conhecimento-numerico-na-primeira-infancia. Publicado: Junho 2009 (Inglês). Consultado em 18 de março de 2024.

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